terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Adeus

- E por que eu devo ser submissa?

- É a ordem natural do mundo, já lhe expliquei isso.

- Mas eu sou tão boa quanto ele! Posso fazer tudo que ele faz! Nós deveríamos ser iguais!

- Minha filha, por que tanta indignação? Sua vida não é boa o suficiente? O que lhe falta?

- Falta dignidade! Você me ensinou que todos somos iguais! Que cada elemento desse mundo tem igual valor! E agora me diz que é natural eu ser submissa? Isso é ridículo!

- Eu providenciei que tudo fosse perfeito para vocês dois. Não falta comida, não falta conforto, não falta alegria. Eu dei tudo que vocês precisavam, por que você continua insatisfeita?

- Porque isso não é justo! Eu pensei que tinha um pai! ... Mas vejo que prefere a ele, não é mesmo? Você prefere a ele!

- Você sabe que isso não é verdade.

- É verdade sim! Qualquer idiota perceberia isso! Até os malditos esquilos percebem isso! Todos riem de mim pelas minhas costas! Todos riem da piada de mau gosto que a submissa aqui é!

Limpei as lagrimas que escorriam pela maçã do meu rosto com a mão e me virei de costas, envergonhada. Nunca havia sentido tamanha indignação. Por alguns instantes, fiquei soluçando e tentando, inutilmente, esconder o choro. Ele não fez nada, ficou lá parado, olhando. Porcaria de pai.

- Eu vou embora!

- Filha, não faça isso.

- Eu vou! Você pode arranjar outra para ele, se quiser, foda-se! Vocês se merecem! E, com certeza, a próxima que vier vai merecer vocês dois! Fiquem aqui com o mundinho perfeito, eu estou indo embora!

Dei as costas e andei sem olhar para trás. Aposto que Ele quis que eu olhasse, Ele adora quando Seus filhos demonstram fraqueza, O faz se sentir onipotente. Babaca! Aquele lugar que Ele nos dera era maravilhoso mesmo, mas aquele dia havia quebrado toda a perfeição. O céu que sempre fora ciano, alaranjado ou negro estava cinzento e pesado, a paisagem tão cheia de encantos estava silenciosa e tudo que tinha vida parecia querer se esconder. Que se escondessem mesmo, melhor para eles! Ninguém é louco de se meter na minha frente quando estou furiosa!

Passei pelos jardins através de uma trilha enorme que pareceu levar uma eternidade para atravessar. Só para aumentar a minha tortura, só para eu ver cada detalhe de tudo que eu estava abrindo mão. Minha boca se contorcia involuntariamente, minhas sobrancelhas estavam apertadas e tensas como nunca, minhas mãos cerradas, meus passos ligeiros e meu olhar portava uma ira nunca vista naquele mundo.

Passei pela árvore favorita Dele, que sinalizava a saída de nosso lar e continuei andando. Depois daquele ponto, o brilho e a vida deixavam de existir aos poucos. O dia que estava cinza começou a ficar opaco e sombrio, mas eu não me importava, a escuridão total era melhor do que aquele lugar tirânico. Enfim, havia chegado aos portões de saída.

- Não vá...

Contorci minha boca ainda mais de tanto ódio e olhei para trás.

- O que você veio fazer aqui!?

Meu amado me olhava com tristeza e desespero. Era evidente que ele não fazia ideia do que estava fazendo, muito menos do que falar. Seu queixo tremeu, o olhar inconsolável, a mão esticada, em suplica.

- Não vá... Fique aqui comigo. Nós podemos ser felizes.

- Você é ridículo! Nunca se importou comigo! Sempre pensou em você e no seu próprio umbigo! Eu nunca vou ser feliz ao seu lado!

- Mas, meu amor...

- Não me chame assim! Não me chame assim, porque é mentira!!! Volte! Seu lugar é lá, ao lado Dele! Ele prefere a você e providenciará a sua felicidade, sabe disso! E você vai se esquecer de mim...

- Mas, sem você...

- Não se faça de estúpido! Não se faça de estúpido!!! Você nunca quis saber de mim e não vai passar a querer agora!!! Você vai querer alguém, ah, com certeza vai! E Ele vai te dar alguém! – eu cuspia as palavras em cima dele enquanto sentia o meu rosto encharcado pelas lágrimas.

Mas um instante de silêncio.

- Eu te amo...

- É mentira!!! Eu não aguento mais isso! Escuta aqui... Eu não vou ficar gastando o meu tempo com esse drama! Você nunca mais vai me ver e vai ser feliz com a próxima que vier, entendeu? Agora suma daqui! Me deixe em paz!

A boca dele tremeu, querendo dizer algo a mais, mas ele não tinha o que dizer. Dei as costas, voltei a andar. Botei um pé para fora dos portões...

- Eu te amo, Lilith...

Respirei fundo, segurando o meu ódio.

- Cala a boca, Adão! – respondi em meio a um trovão.

Gotas de chuva começaram a pingar.

E fui embora.

5 comentários:

  1. Quando eu comecei a ler achei que era sobre Adao e Eva, mas dai lembrei da outra mulher e quando li o nome dela, tive a certeza. Muito bom o conto.

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  2. Simplesmente perfeito
    mesmo correndo o risco de ser repetitiva, devo dizer que sempre me surpreendo com teus contos. Mais uma vez parabéns você é muito talentoso querido.

    Beijo

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  3. Nossa. Fantástico! Adorei apesar de já se ter a suspeita de quem são os sujeitos do conto desde o início. Muito bom.

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  4. Conto rapido e gostoso de ler, o dialogo me manteve com a atenção presa a todo momento. Está de parabens Bernardo, não só por este mas pelos anteriores. Já visito a algum tempo mas nunca tinha comentado antes, mas quando decidi retomar meu blog percebi que um feedback é sempre importante pro autor. Por falar nisso, posso contar com sua opnião em ao menos uma das minhas postagens? Um feed de outro autor seria super importante.
    http://pergaminhoembranco.blogspot.com/
    Qualquer outra coisa só falar, @AdsonBarros

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  5. O conto e´excelente. Retrata exatamente o deve ter se passado nesse momento crucial da "História da Humanidade". Deveria ser lido por toda mulher que tem consciência de como a sociedade a trata, e se espelhar nesse brado de liberdade. Está muito atual este conto!

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