domingo, 26 de dezembro de 2010

Valor

Pensei que esse dia nunca fosse chegar, mas chegou... Aconteceu... Graças ao meu orgulho e ao meu amor pelas batalhas e pela arena. Esther se foi... E dessa vez, eu sei que ela não vai voltar.

- Veja agora como é morrer pelas mãos de um campeão orc!

Uma das lâminas de seu machado-duplo – uma arma que parece dois machados ligados pelas pontas dos cabos - veio em horizontal pela esquerda, previsível, bastou erguer meu escudo e bloquear, a outra lâmina veio em seguida tão previsível quanto a primeira e eu a aparei com minha espada com a mesma facilidade. O joelho que veio em meu estômago foi ainda mais previsível, mas eu deixei que me atingisse. Dei três passos para trás quase vomitando de dor, olhei em direção ao meu oponente e vi sua bota de couro coberta de areia golpeando meu rosto e me jogando de costas no chão.

- Você está facilitando muito as coisas, humano fraco! Levante-se ou morrerá como um cão desonrado!

Virei no chão para poder me apoiar com as mãos, mas quando pensei em levantar, sua bota veio de encontro a minha nuca, afundando meu rosto na areia até meus lábios se ralarem e meu nariz golfar em sangue. Em seguida, recebi mais dois chutes em meu abdômen e, pelos deuses, como aquele oponente era forte.

“Eu não vou mais aturar isso”, ela disse. “Eu não vou continuar assistindo aflita às suas lutas enquanto você tenta se matar a cada dia nas arenas!”, ela disse. “Eu sou um guerreiro, essa é minha vida, você acha que eu vou parar só porque você disse que eu devo?” Eu respondi. “Eu imaginei que você fosse pensar sobre”, foi a última coisa que eu a ouvi falar. “Se diz respeito ao meu trabalho, eu não penso sobre. Isso fazia parte do pacote quando você aceitou noivar comigo, se lembra?”, foi a última coisa que eu a disse. Então, olhei para o lado, vi nossa aliança deixada para trás na mesa de cabeceira e ouvi a porta batendo. Onde eu estava com a cabeça? Como eu pude deixar isso acontecer? A coisa mais importante que havia acontecido na minha vida deixada na mesa do quarto de uma estalagem...

- Vou mostrar para os humanos fracos que nenhum de vocês é capaz de desafiar um campeão orc!

Senti sua mão larga agarrar meus cabelos pela nuca e me erguer à força. Em seguida, vi uma das lâminas de seu machado-duplo vindo em minha direção. Forcei-o a me soltar golpeando seu braço com meu escudo e pulei para trás, me esquivando. Ele girou sua arma com os braços erguidos no ar, por cima da sua cabeça, se exibindo e atiçando o público. Começou a andar em minha direção, altivo e confiante, seu abdômen e costelas desprotegidos, seguro de que eu seria incapaz de atacá-lo. Eu apenas esperei com meu escudo pendurado em minha mão esquerda e minha espada apontada para o chão em minha mão direita.

Então, da platéia, a voz mais doce e mais inspiradora fez-se ouvir:

- Reaja, Gladius!!!

O tempo parou quando eu senti, espontaneamente, o sorriso confiante e debochado que eu faço para meus oponentes quando sei que minha vitória já está garantida surgir em meu rosto.

A lâmina veio em vertical de cima para baixo. Previsível. Ele girou a arma na altura de meu tornozelo. Previsível. Saltei esquivando-me e contra-ataquei com um golpe de escudo em sua cabeça, fazendo-o dar alguns passos para trás. Eu podia finalizar ali mesmo aproveitando o momento em que ele se recuperava da pancada, mas preferi esperar para que ele desse mais uma olhada no meu sorriso de deboche.

- Eu vou esmagar seu crânio e fatiar a sua carne, humano fraco!!!

E o campeão orc tentou uma ultima investida desesperada. Previsível.

- Não na frente da minha garota.

Ele veio e girou seu machado. Eu girei junto, permitindo que ele passasse direto por mim e senti o vento do seu golpe passar longe. Antes que ele parasse de correr, eu arremessei minha espada em suas costas. Em cheio. Seu corpo tombou de peito no chão e se arrastou mais um metro na areia. O público aplaudiu. Minha noiva estava sorrindo.

Não a vi depois do combate. Passei a tarde arrumando minha bagagem para partir para estrada no dia seguinte. E pelo visto, iria sozinho. Talvez ela só quisesse garantir que eu saísse vivo dessa. Talvez o máximo que ela ainda sentisse por mim fosse a piedade que ela sentiria por qualquer criatura viva. Talvez...

- Foi uma bela luta, mais cedo.

- Esther! Eu pensei que... Você... Eu... Desculpa.

Ela pôs o dedo em meus lábios com a delicadeza de um anjo.

- Não se empolgue, eu estava apenas pelas redondezas e sem nada para fazer.

Eu não conseguia tirar os olhos dos olhos dela. Eu não conseguia me mover. Eu poderia derrubar um dragão e trazer a sua cabeça em oferenda, mas na frente dela, eu sou o mais fraco dos novatos. Ela continuou:

- Eu me apaixonei por um guerreiro e eu não posso esperar que ele seja algo diferente disso. Eu não quero me casar com um almofadinhas que vai ficar engordando enquanto os outros nobres tentam me cortejar. Eu quero um guerreiro que inspire tanto valor e tanta força que nem mesmo o mais tenebroso vampiro tenha coragem de chegar perto de mim. Apenas prometa que você vencerá cada um deles.

Ela me abraçou e me apertou, fazendo questão que eu sentisse a aliança no dedo dela. Eu embrenhei meus dedos em seus cabelos, fazendo questão que ela sentisse a aliança em meu dedo. E nós fizemos questão de mostrar um para o outro o quanto nos amávamos naquela noite e que continuaríamos amando em todas as próximas.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Agradecimentos e Indicações

Em primeiro lugar, um obrigado mais do que especial para Selene Paiva, pessoa com paciência de Jó que corrigiu todos os contos já postados nesse blog - se não fosse por ela, os contos não seriam tão bons assim. Obrigado Selene

Agradeço, também, à minha colega blogueira Géssica Neves que comentou em TODOS os meus posts até agora! Ela e a Selene tem sido minhas leitoras mais fiéis =P. Obrigado pelo apoio, Géssica

Por fim, segue uma lista de outros blogs que valem a pena dar uma olhada - e comentada, sempre:

http://pontog.radicaos.com/ - Blog da Géssica, sobre tudo um pouco

http://www.oneshotgun.blogspot.com/ - Blog da minha amiga de faculdade Úrsula Castro

http://luzetrevas.blogspot.com/ - Blog de contos de Mairon Aguiar, meu melhor amigo

http://normandus303.wordpress.com/ - Blog patriota de meu querido tio-irmão Alessandro Amara


É isso aew, galera, em breve eu publico um conto aqui!

Abração!!

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Lua Cheia (Parte 1)

Cantarolava baixinho, caminhava pela estrada, despreocupada e elegante. Conhecia bem o caminho até a casa de minha avó. Ninguém nunca entendeu porque ela morava tão longe de tudo, mas não tinha muito o que se questionar: coisas de druida. Nem podíamos reclamar também, era um caminho completamente tranqüilo, apenas o verde da floresta, salpicado de amarelo e vermelho pelas flores e o céu escuro do começo da noite quase invisível por cima dos galhos das árvores. Às vezes, uma fada passava tímida atrás de uma margarida ou uma lebre saltitava pelos meus tornozelos. Diziam que entes viviam aos arredores, mas era quase impossível identificá-los sem que eles desejassem. O canto dos pássaros era raro, mas o som do vento levando folhas e galhos secos era bem comum.

Uma caravana havia me levado até um vilarejo próximo, me deixando apenas a um pouco mais de duas horas de caminhada. Levava apenas o fundamental: uma bolsa de viagem com um punhado de roupas e alguns doces de presente para minha avó. Muitos falaram para eu levar algo mais natural e saudável do que doces, mas ela já vive de maneira natural demais e eu não via sentido em presenteá-la com o que ela mesma já tinha todos os dias. Botei a roupa mais bonita para encontrá-la: vestido todo branco, até meus tornozelos, com um espartilho e luvas cinzentas, sandálias de couro confortáveis, e um capuz também branco. As cores favoritas de minha avó eram branco e verde, mas, como eu nunca simpatizei muito com o verde, vim só de branco mesmo. Sem maquiagens, apenas os longos cachos castanhos, sardas e orelhas pontiagudas já me deixavam elegante o suficiente para a ocasião.

Não faltando muito para a casa de minha avó, avistei um homem encostado numa árvore pelo caminho. Capa marrom fechada cobrindo todo o seu corpo, deixando apenas as pontas das mãos para fora que vestiam luvas de couro reforçado. Capuz caído nas costas, rosto sério, cabelos negros compridos. Era alto e um pouco largo, para um elfo. Pelas aparências, fez questão de ser visto, mas eu o ignorei - não me interessava o que um matuto fazia por aquelas redondezas. Passei por ele e após alguns passos:

- Esta região não é perigosa para uma dama a essa hora da noite? – ele falou sem dirigir o olhar.

Virei-me, olhei bem para ele e respondi:

- Se acha essas redondezas perigosas é porque, certamente, nunca esteve por aqui ou conhece e quer aprontar alguma trapaça.

Imóvel, ele continuou:

- Ouvi dizer que um monstro tem espreitado este caminho.

- Acredito que as pessoas sejam mais perigosas do que os monstros.

- Se a senhorita é tão confiante, eu poderia deduzir ser você o monstro.

- Insulte-me mais uma vez e eu te faço engolir esta árvore onde está encostado e não será pela boca!

Ele continuou olhando para o chão por um tempo, indecifrável.

- Perdoe-me. Você parecia estar ocupada e eu a interrompi. Ignore-me e prossiga sua caminhada.

Mantive meus olhos severos no homem. Ele desencostou da árvore, deu as costas, pôs-se a andar e depois de cinco passos sumiu de vista sem nem fazer barulho. Não sabia o que ele queria, talvez até tivesse boas intenções, mas não me importava, os desconhecidos devem ser mantidos longe.

Voltei para minha caminhada, tentando esquecer o inconveniente. Deixei minhas sobrancelhas relaxarem, respirei fundo, permiti um sorriso discreto fluir pelas bordas de meus lábios e logo, sem me dar conta, já voltava a cantarolar baixinho. Uma coruja piou, eu olhei e ela voou de seu galho, miúda, de cor marrom. Pensei o quanto era sortuda por ter visto um pássaro naquela floresta, algo tão raro.

Um passo depois do outro, sem a menor pressa, logo avistei a casa de minha avó. Toda feita de galhos e troncos quase que brutos ainda, um único cômodo largo e circular, feito entre as árvores e arbustos, seria facilmente ignorado por olhos distraídos, mas até que era bem civilizado para a casa de uma druida. Não havia porta, apenas cascas e sementes ligadas por fios formando uma cortina na entrada. Delicadamente, abri caminho com minha mão direita, fazendo um chocalhar suave e espiei por dentro da casa:

- Vó?

Entrei devagar. Por dentro, tudo muito simples: uma fogueira ritualística apagada no centro, uma cama de palha perto de uma parede, armários rústicos em todas as paredes, frascos com animais conservados dentro, outro com chás ou poções, alguns artesanatos organizados em um outro canto, tudo feito e distribuído com muito apreço. A iluminação era muito boa: a construção desordenada das paredes e do teto abria brechas gordas em todos os lados, permitindo uma boa entrada para a luz da lua cheia. Olhei tudo ao redor, procurando-a até que avistei um corpo no chão se contorcendo:

- Vó!

Larguei minha bolsa de viagem e corri até ela:

- Saia... Daqui... – Ela falou com dificuldade.

- O que houve, vó? Você está bem?

Minha avó se contraía e contorcia em convulsões terríveis. No meio dos espasmos, sua mão agarrou o chão e começou a estalar de dentro para fora. Os ossos se racharam forçando a pele ao seu limite, quase se expondo, e logo pareciam se regenerar, maiores e mais grossos, nas pontas dos dedos, eles se esticaram rasgando a pele, se tornando visíveis até que a mão já parecia triplicar de tamanho e se recobrir de pele e pelo grosso:

- Vovó... O que houve com sua mão? O que está havendo com você?

Eu estava tão assustada que já não conseguia me aproximar dela. Ao ouvir minha voz, ela me encarou: seus olhos mantinham a cor alaranjada, porém, ao invés da expressão serena e paciente, uma bestial e descontrolada havia tomado seu lugar:

- Vovó... O que houve com seus olhos?

Ela respirava fundo, com força e fúria, quase bufando – ou rosnando. Subitamente, o olhar de ira se transformou em pura dor aos sons de ossos estalando e pele rasgando que pareciam berrar de dentro de cada parte do corpo dela. Seus ouvidos élficos se cobriram de pelo, os dentes caíram enquanto ela babava sangue e novos se formaram pontiagudos e robustos enquanto o queixo se partiu ao meio, se contorceu, partiu novamente, se projetou para frente, se juntou e partiu e o nariz cedeu para um formato redondo e negro, formando um focinho lupino:

- Vóvo... O que houve com suas orelhas? O que houve com sua boca? O que é isso?!?!

Sem me dar conta, dei vários passos para trás, uma mão na boca e outra tentando achar uma parede ou uma mesa para me encostar, apavorada. Pelos longos e espessos recobriram todo o corpo de minha avó, transformando-a numa figura ambiguamente cômica e terrível. Sua roupa feita de algodão coletado na própria floresta e costurada por ela mesma mal cabia na besta, rasgando nas extremidades e sua coroa de flores permanecia encaixada acima das orelhas. Era assim que se vestia o monstro híbrido entre gente e lobo que se encontrava na casa da minha avó. Em seu último sinal de tentativa de controle – ou o primeiro de descontrole -, a besta socou uma prateleira da parede, partindo-a ao meio e espatifando os vasos que estavam apoiados nela em migalhas. Dei um grito e corri.

Enquanto disparei para fora da casa, ouvi um uivo longo e agudo vindo de trás de mim, não sabia o significado e nem queria descobrir. Corri sem pensar para onde ou para que. A sensação que tinha era que se eu parasse para pensar por um instante, a besta iria me alcançar. A floresta estava mais escura e absolutamente silenciosa, sem som de nenhum animal ou do vento, apenas meus passos e minha respiração. Logo o silêncio foi partido pelo latido gutural do monstro e os sons de seus passos em uma velocidade assustadora.

Corri entre árvores e galhos, ora tendo que me esquivar das plantas, ora acelerando meus passos ao máximo que meu corpo me permitia, torcendo para que qualquer sinal de civilização surgisse milagrosamente. Ouvi o latido mais uma vez, mais perto. Apertei a corrida, me esforcei, usei todo meu fôlego. Ouvi mais um latido, já sentindo o calor do bafo nas minhas costas. Corri ainda mais rápido e tropecei no chão.

Girei com meu pé preso em uma raiz, torcendo meu tornozelo e cai em cima de meu braço, no chão. Soltei um grito no ímpeto e arregalei os olhos, procurando a besta.

Silêncio.

Olhei para um lado. Olhei para o outro. Rosnado! Olhei na direção do som e lá estava o ser meio lobo e meio gente, vestindo as roupas de minha avó, me encarando, exibindo seus caninos atrozes e anunciando o bote. Por mais inútil que fosse, me levantei e corri.

Mancava, pois meu tornozelo doía muito, não conseguia manter a mesma velocidade de antes por falta de fôlego e pela dor, mas meu corpo já não esperava ordens da minha mente. Enquanto corria, ouvi os sons dos passos do monstro vindo pela minha esquerda. Olhei e pude vê-lo correndo a uma certa distancia, não exatamente atrás de mim, mas na diagonal. Ele queria que eu o visse. Seja lá no que minha avó havia se transformado, não era só uma besta: era um ser predador e maligno. Talvez eu não fosse só sua refeição, mas também seu esporte. Em questão de segundos, o som dos passos se deslocou e ele estava a minha direita, latindo e rosnando.

Corri, acreditando que seria morta antes mesmo de minhas pernas pararem. Seria até melhor, rápido, talvez indolor. Apenas uma mordida, uma única mordida e morte. Eu poderia perder a vida correndo, nem perceberia. Mas minhas pernas me traíram. A dor do tornozelo torcido se agravou inesperadamente, me fazendo tropeçar de novo e cair de peito no chão. Machuquei meus braços e meu rosto com a pancada, me odiando por não morrer de forma rápida e instantânea. Depois de alguns segundos de tontura, comecei a me rastejar, me puxando pela terra e pelas raízes, até ouvir o latido do monstro e sentir meu corpo paralisar. Ousei me virar, para olhar uma ultima vez para a besta. Minha respiração era rasa, meus olhos encharcados, meu corpo todo sujeira e tremedeiras. Não muito longe, o monstro: seus olhos transbordavam ira, sua boca repleta de presas e baba estava afogada em rosnados guturais, com o corpo arqueado e volumoso. Um passo lento em minha direção.

- Não... – Eu deixei escapulir baixinho, quase miando, no meio da tremedeira.

Outro passo lento com o olhar vidrado em sua janta. Um passo mais rápido, outro, outro, corrida, o rosnado se agravou, pegou impulso para o bote e uma flecha.

Um uivo longo e dolorido fez-se ouvir por toda a floresta. Uma flecha surgiu cravada nas suas costas. Ódio e dor dominaram sua face lupina. Ele olhou para o lado, tentando procurar o responsável pelo ataque e outra flecha surgiu com um zumbido curto e preciso, logo ao lado da primeira e a besta cuspiu um uivo furioso. O monstro soltou alguns latidos descontrolados e se preparou para dar o bote em outra direção, mesmo sem ter certeza de onde vinham as setas. Ele rosnou e recebeu uma terceira flecha, em uma das patas. Uivou e correu em fuga. Adentrou na floresta e sumiu nas sombras das árvores em poucos instantes. Meu corpo continuou paralisado. O mundo parecia paralisado. Depois de alguns instantes olhei para os lados, mexendo apenas os olhos, ainda apavorada. Logo, uma mão recoberta de uma luva de couro reforçado surgiu na minha frente, me oferecendo apoio para levantar:

- Eu havia dito que a região estava perigosa demais para uma dama. Vamos! O monstro logo voltará e nós precisamos nos esconder.

(continua...)

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Não a Nós

Raspei minha espada no chão da entrada da capela formando o sinal da cruz, orando por proteção. Caminhei até o altar, me ajoelhei e rezei brevemente. Ao meu redor, meus irmãos estavam sentados em suas fileiras, de mãos dadas, olhos fechados e respiração sincronizada. Pacientemente, todos aguardavam pelas minhas palavras. Uma missão de extrema delicadeza: orar mensagens de coragem, valor, honradez, dignidade e paz. Todos fomos treinados para ter todas estas virtudes em cada gesto de nossas vidas, desde os simplórios até aos mártires. Mas aquele não era um dia simplório. Era um dia em que todos nós necessitávamos de força. Um dia em que todos nós necessitávamos estar na mais pura comunhão com nosso Deus, pois é pela vontade Dele que nos guiamos.

Fechei os olhos para acompanhar meus irmãos. Concentrei-me em equilibrar minha respiração com a deles. Apertei o cabo de minha espada em meu peito, repousando minha face na área plana de sua lâmina. Respiramos mais uma vez, como um só individuo. Então, deixei a voz de meu Senhor falar através de minha boca:

- Pensem, por um instante, em todos os ensinamentos de nossa ordem... Agora os esqueçam. Nossas almas devem seguir nossas virtudes como nossos corpos seguem nossas respirações. Enquanto pensarmos ou calcularmos, estaremos sujeitos a falhas, pois somos mortais. Nossas virtudes devem fluir de nossos inconscientes, de forma natural, espontânea, como nossas respirações.
Enquanto tivermos espíritos virtuosos e mentes equilibradas, continuaremos nossa missão de proteger, zelar e purificar este mundo. Nossos espíritos e nossas mentes são a base de nossas ações e é com nossas ações que transformamos o mundo. Sendo fiéis a este ideal, criaremos um mundo virtuoso e equilibrado.
Lutemos com armas, mas nunca nos esqueçamos do amor. Em casos de necessidade, usamos a violência, mas não é por violência que erguemos nossas armas. Erguemos nossas armas por amor. Amor ao nosso povo, amor a nossa pátria, amor as nossas famílias, amor aos nossos irmãos de ordem e amor ao nosso Deus. É graças ao amor Dele que estamos aqui hoje e através do amor Dele que baseamos cada uma de nossas ações.
Reverenciemos nosso Pai e respeitemos as crenças alheias. É o respeito por nossos diferentes que nos diferencia dos bárbaros. Mas até os bárbaros possuem suas crenças e seus panteões. Cada sociedade guarda, em sua raiz, uma centelha divina. Essa é a prova de que, querendo, todos podemos nos tornar melhores. Apenas sendo fiéis ao nosso Deus e empunhando a espada com a qual Ele nos presenteou estaremos, de verdade, na nossa jornada para um mundo melhor.
Desejemos o melhor para nossos inimigos. Que nada falte para eles e nem para seus familiares. Que se estenda uma longa mesa de banquete, farta de alimentos para que possamos resolver nossas discordâncias de forma civilizada. Que possamos, no final, brindar um cálice transbordante de paz e, se possível, aliança.
Mas que nenhuma aliança seja mais poderosa do que a aliança entre nossos irmãos. O nosso maior segredo é a nossa união. Não chamamos uns aos outros de irmãos por palavras vazias. Chamamos-nos de irmãos por sabermos que sempre que uma espada se levantar contra nós, um escudo se erguerá em nossa defesa. Chamamos-nos de irmãos por sabermos que nenhum de nós nunca estará sozinho e que por mais que estivermos distantes, ainda estaremos lutando juntos. Chamamos-nos de irmãos por nunca nos esquecermos de que a nossa arma mais importante não é a nossa espada e que nosso símbolo mais heróico não é o nosso estandarte, mas sim, que nossa maior arma e o nosso maior símbolo é o nosso escudo. Escudo que erguemos um para o outro, agora e sempre.
Fizemos nossos juramentos ajoelhados diante do santo altar e é diante dele que rezamos todos os dias, sete vezes ao dia, em homenagem ao nosso Pai. Ao longo de nossas rezas, lembramos de cada um de nossos juramentos. Lembramos a importância que é repeti-los ao longo do dia. Lembramos a importância de sermos fiéis à nossas palavras, aos nossos irmãos e ao nosso Deus. Uma palavra pode ser mais poderosa do que mil ações. Nossas armas e nossos escudos devem agir em prol de nossas promessas, nunca o contrário.
Devemos sempre nos lembrar da misericórdia e da compaixão de nosso Pai. Devemos lembrar que qualquer excesso nos levará à ruína e manchará nossa honra. E mais importante do que nos mantermos dissipados dos vícios materiais, devemos manter nossas intenções dissipadas de qualquer essência mesquinha ou vil. Nenhuma ação é em nome de nosso Deus, se ela não for pura e sincera. Nossas intenções são como sementes: elas devem ser fortes, sadias e limpas para poderem gerar bons frutos.
Mas apesar de toda a nossa bondade, todo o nosso amor e toda a nossa pureza, não podemos nos esquecer de que somos cavaleiros. Nascemos para lutar contra todo e qualquer ato que ameace nossas virtudes. Seja através da diplomacia ou da lâmina, nosso dever é defender nossas famílias e nossa pátria, em nome de nosso Deus. Não é com ódio e intolerância que conquistaremos um mundo melhor, e sim com trabalho constante e contínuo. Escolhemos viver assim. Escolhemos nos sacrificar por aqueles que precisam de nós. Pois disse o Senhor de Todos os Exércitos: “Onde dois ou mais estiverem reunidos em Meu nome, ali estarei Eu.”

Abri meus olhos para observar o altar mais uma vez. Concentrei-me em equilibrar minhas energias com a de meus irmãos. Ergui minha espada em sinal de respeito e a embainhei. Respiramos mais uma vez, como um só individuo. Ouvi, ao longe, os tambores rufando. A guerra estava para começar e era nosso dever proteger nosso povo.

- Abram seus olhos, meus irmãos... É hora de lutarmos.

Lentamente, um por um, abriram os olhos, respiraram serenamente e levantaram-se. Juntos, olhamos uma última vez para o santo altar, para o símbolo de nossa fé. Humildemente fizemos o sinal da cruz em nossas faces e pronunciamos ao mesmo tempo:

- Não a nós...

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Além do Abismo

Corri pelo corredor mais uma vez. Já tinha passado por ele antes, mas aquela mansão parecia um labirinto. Onde estava a maldita chave!? Era difícil achar um objeto tão pequeno numa casa enorme iluminada apenas pela luz da lua. Ignorei as dezenas de portas ao meu redor, fui até o fim, virei à direita e desci pela escada que levava para sala de estar. À minha esquerda a área familiar com as poltronas, uma mesa e móveis, à direita a sala de jantar. Pensei em revirar as estantes de livros e artigos de porcelana, mas bastou eu pensar por dois segundos para aquela sombra que me seguia surgir pela porta entre as estantes de louças.

Eu não precisava pensar para fugir daquilo. Fui para sala de jantar. Minha mente e minha alma se dividiam na tarefa de achar a maldita chave e de sobreviver. Passei direto por aquele cômodo, entrei em outro corredor. Este, sem portas, apenas quadros, quadros e mais quadros. Eles estavam em toda parte. Me olhavam, me julgavam, me condenavam. Minha única opção era a porta ao fim daquela passagem estreita. Eu só queria ter a sorte de atravessá-la e não me encontrar num beco sem saída. Apressei-me em alcançá-la, mas o chão estremeceu bruscamente e eu tropecei. Alguns quadros caíram pelo corredor, um atingiu meu ombro me machucando. No chão, olhei para trás e lá estava ela, serena, me seguindo sem pressa. Levantei e num impulso só arrombei a porta a minha frente.

Estava na cozinha. Olhei o ambiente por menos de alguns segundos procurando a chave, mas nada, apenas panelas, facas, garfos, garrafas, e materiais de cozinha. Fui para o outro lado do cômodo, pela minha esquerda, até outra porta. Abri e subi a escada que surgiu. Estava de volta ao andar de cima. Corri até o final do corredor tentando identificar alguma porta que ainda não tinha entrado, inutilmente. Quando fui virar para o outro corredor, lá estava ela, me esperando. Voltei por onde vim e desci a escada.

Encontrei-me no porão da casa. Havia pilhas e pilhas de caixas de madeira por todos os cantos. Derrubei uma no chão, quebrando-a e pus-me a procurar a chave no meio das roupas que se espalharam aos meus pés. Nada. Quebrei outra. Pratos de porcelana. Quebrei outra. Brinquedos de crianças. Quebrei outra. Colares, anéis, brincos, pulseiras e nada de chave. Desisti. Corri para outra porta e sai pelo jardim dos fundos da mansão.

Após alguns passos, parei para tentar achar alguma peça brilhante em meio às flores do jardim. Flores de todos os formatos e cores. Azuis, violetas, amarelas, rubras e nada dourado brilhando. Avistei um parquinho de criança mais ao fundo e corri até lá. Escorrega, balanço, gangorra e nada da chave. Olhei ao meu redor, tentando localizar algo que ainda não tivesse reparado e meu estômago embrulhou. Senti uma contração no abdômen que me forçou parar por um instante. Logo em seguida, uma segunda contração ainda mais forte me contorceu. Um engasgo. Vômito.

Vomitei compulsivamente. Minha barriga doía tanto que caí de joelhos no chão. Ao término, espremi meus olhos com força enquanto respirava fundo tentando me recuperar da dor e do enjôo. Aos poucos abri meus olhos e pulei para trás, me arrastando no chão, com a visão que tive. Meu queixo tremia, meus olhos não acreditavam. Olhei mais uma vez, incrédulo e quase vomitei novamente. Não havia muitos elementos identificáveis em meu vômito. Mas eu pude identificar um dedo. Pude identificar um olho. Pude identificar um dente. Meus braços tremiam tapando a minha boca. O desejo de não ver mais danações como aquela me deram força para não vomitar novamente. Limpei as lágrimas dos meus olhos e me levantei.

Avistei à minha frente uma casinha de madeira que deveria ser uma oficina ou um estoque. Corri antes que eu me convencesse que aquela experiência havia sido real. No interior, um balcão ao centro e entulhos de todos os tipos em prateleiras pelas laterais. Olhei uma, duas, três, quatro, cinco prateleiras e nada. A chave não devia estar ali. Sai pela mesma porta que entrei e estava de volta ao corredor dos quadros. O tempo parecia parado naquele ambiente. Quadros, muitos quadros, por todos os lados, alguns derrubados pelo chão, todos me olhando. Tentei ignorar o calafrio que me veio à espinha e fui direto para a porta do outro lado.

Estava de volta à sala de jantar. Segui direto para a sala familiar, mas algo me chamou a atenção. Parei para olhar e lá estava a pequena chave dourada, bem em cima da mesa de jantar, debaixo do meu nariz o tempo todo. Apanhei e corri para a porta principal da casa. Meu braço tremia insuportavelmente, fui obrigado a segurar a chave com as duas mãos para diminuir a tremedeira. Encaixei na fechadura, girei e abri a porta.

Corri para fora da mansão e me encontrei em uma floresta. Passei por entre as árvores usando todo o fôlego de um fugitivo em pleno motim. Por vezes me abaixei para não esbarrar em galhos, por vezes saltei para não tropeçar em raízes. As folhas secas se amassavam barulhentas aos meus pés. As corujas piavam inquietas aos meus passos. Enquanto corria, fui interrompido por uma sombra em meu caminho. Parei e observei. A figura estava parada no meio da trilha, rosnando. Deu um passo e exibiu seus enormes caninos. Era um lobo, e algo me dizia que ele não iria me atacar por fome.

Ele veio.

Pulou em cima de mim, na direção do meu pescoço, me atacando entre rosnados e latidos. Fui derrubado para trás tentando empurrá-lo para longe. Por cima, o animal parecia absurdamente pesado. Sua boca raspava nos meus braços e no meu tórax tentando abocanhar meu pescoço enquanto eu tentava me defender com empurrões e coices. Encolhi minhas pernas e com as duas juntas consegui chutá-lo de cima de mim. Ele caiu não muito longe e sem demora voltou correndo em minha direção. Rolei para direita, deixando-o pular de focinho contra as árvores. Sabendo que seria impossível me livrar daquela besta com minhas próprias mãos, dei dois passos de impulso, saltei e me pendurei com as mãos no galho de uma árvore. A bocarra do lobo agarrou minha bota no caminho, arrancando-a. Se eu tivesse demorado mais um instante, seria meu pescoço na boca dele . Pendurado, olhei para trás, encarando a figura insanamente furiosa no solo. O animal não parava nem por um instante, seus latidos e rosnados se tornavam onipresentes naquele ambiente. Respirei fundo, precisava de extremo cálculo ou minha vida acabaria no instante que eu voltasse para o chão. Ele latiu, pulou tentando me abocanhar, rosnou, deu uma volta embaixo de mim. Fechei os olhos e soltei as mãos. Meus dois pés caíram precisos no pescoço do maldito. Ouvi os ossos estalando e saltando pela carne. Mantive os olhos apertados, me forçando a não olhar para o que acabara de fazer. Respirei fundo, olhei para frente e voltei a correr.

Segui sem olhar para trás nem por um instante com meu fôlego em seu limite até chegar ao lago.

- Juan! Juan! Até que enfim! Eu achei! Trouxe o pergaminho que você precisava!

Juan parecia me esperar a beira do lago. Com um olhar sereno, ele me respondeu:

- Mas eu não posso mais receber nada. Você esta tentando entregar o pergaminho para a pessoa errada.

- Do que você esta falando Juan!? Eu quase morri pra te entregar isso! Ela deve estar me seguindo até agora! Anda! Pegue! Pegue antes que ela apareça!

- Weiss, não seja teimoso! Você sabe que eu não posso receber isso! Entregue a pessoa certa.

- Mas...

- Entregue a pessoa certa...

A imagem de meu amigo foi se desfazendo lentamente na água e eu estava sozinho mais uma vez. Respirei fundo, engoli o silêncio...

Olhei para trás.

Lá estava ela. Vindo por entre as árvores, se aproximando vagarosamente. Um longo vestido branco e rasgado nas extremidades cobria o seu corpo, mãos delicadas de pele macia e clara se estendiam em minha direção, longos cabelos prateados refletiam à luz da lua e a face oculta por uma máscara de porcelana simples, branca, com um fino sorriso vermelho esculpido nos lábios e pequenas abertura para os olhos.

Não havia mais para onde correr. Não havia mais para que correr. Ergui meu queixo tentando simular um orgulho inútil, enquanto todo o resto do meu corpo se estremecia inquieto. Meu coração disparou. Minha garganta engoliu o seco. Meus olhos se paralisaram. E ela veio.

Suas mãos estendidas alcançaram meu rosto. Senti o gelo da mácula tocando minha face de forma graciosa. Sua máscara se aproximou o suficiente para eu poder olhá-la nos olhos. Olhos azuis da cor da água. Ao redor, carne queimada e podre. Ela se aproximou quase encostando em minha face. Respirei gelado. Tremi ao ponto de mal conseguir fixar meu olhar no dela. Senti meu corpo arrepiar por completo. Senti minha vida diminuir como uma chama que se apagava dentro de mim. Senti a presença dela em cada centímetro da minha pele e percebi que, não só eu, mas cada folha seca no chão, cada galho de árvore ao redor e que o lago inteiro podia sentir o mesmo que eu – e todos se inquietavam.

Me preparei para entregar minha vida em minha última respiração.

Acordei.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Lâmina Vermelha

Pulei para minha esquerda enquanto a lâmina afundou o chão com o seu peso. Mal tive tempo de firmar os pés no solo e me agachei para desviar do novo golpe que teria me partido ao meio. Tentei uma estocada, mas o imenso corpo girou para o lado e, por puro instinto, me joguei rolando no chão, sentindo o assobio da lâmina passando pelo ar enquanto escapava de mais um golpe mortal. Eu simplesmente não podia receber nenhum golpe de uma lâmina daquele tamanho - ela facilmente partiria meus ossos e abriria meus órgãos caso me acertasse.

Difícil de acreditar que meu adversário realmente era um humano. Seu corpo de mais de dois metros de altura era coberto por uma armadura de placas completa, tornando invisível até seus olhos. Além de alto, meu inimigo era largo como uma muralha e sua arma também surpreendia. Arma a qual ele dominava de uma forma a só me dar tempo de me esquivar, sem conseguir pensar nada além de me manter vivo. Meu escudo era inútil naquele combate, pois era evidente que se eu tentasse bloquear, meu braço seria esmigalhado junto com o metal no impacto. Por poucas vezes eu consegui atingir sua armadura, e mesmo assim, sem provocar nem um arranhão. Um adversário realmente indestrutível.

Virei-me para meu oponente assim que terminei meu rolamento. Ele andava em minha direção segurando a espada com uma das mãos apoiada no ombro, desleixado. Um blefe. Sua guarda estava aberta, mas sua mente já estava com o contragolpe preparado assim que eu tentasse atacar - fingi morder a isca. Investi em sua direção, sua espada se ergueu no ar e desceu com o peso de uma avalanche, como previ. Esquivei para direita, a espada afundou pesada no chão e eu chutei seu punho com toda força. Inútil. Desarmá-lo parecia minha única chance de vitória, mas o bastardo usava uma manopla de segurança. Ele nunca soltaria a arma. Desgraçado!

Um riso abafado pelo metal saiu de seu elmo e, com uma força descomunal, ele girou a espada em minha direção. Fui obrigado a golpear a lâmina de baixo para cima com meu escudo, na tentativa de desviá-la. Mal calculado. A lâmina atingiu meu escudo e, como esperado, estraçalhou-o. Tropecei alguns passos para trás com o impacto, tentando não tombar, sentindo meu braço latejar enquanto os restos de metal despencavam pelo chão. Parecia que um mamute havia pisoteado meu punho. Já não domava minha respiração de tão ofegante. Parecia que meu fôlego não me permitiria nada além de erguer meu escudo e minha espada. Encarei os vãos negros do visor do meu adversário.

A vida nas arenas é sempre incerta. Nossa vida pode terminar a qualquer momento, basta encontrar um adversário mais forte. O público estava em êxtase. Ausohlung, meu adversário, era o campeão daquela arena hà alguns anos. Seu povo o amava e ele defendia a honra de sua pátria e da tradição guerreira local. Eu não tinha a menor chance.

Ele ergueu sua espada em posição de lança, na altura de seu peito e veio em investida. Abaixei-me, deixando a lâmina passar por cima de mim, agarrei sua cintura e com um urro de força e ímpeto, aproveitei o impulso de meu adversário, ergui seu corpo do chão e joguei-o para trás, fazendo-o dar uma cambalhota pelo ar. Sem perder tempo, ataquei com minha espada na direção de seu elmo, mas ele bloqueou com sua arma. Antes que eu pudesse pensar em outro ataque, o maldito rolou pelo chão e se levantou, voltando à posição de guarda, dessa vez nem tão desleixado. Pelo visto, além de dominar sua arma, Ausohlung também tinha total domínio de sua armadura.

- Devo agradecer-lhe Draco! Havia anos que eu não sentia tanta adrenalina em um combate! Ainda mais vindo de um forasteiro! Meu povo estava precisando de uma emoção como esta!

Eu ainda tentava recuperar o fôlego enquanto ouvia sua voz abafada.

– Você será eternamente lembrado em nossas histórias! Sinta-se honrado, pois meu povo jamais se esquecerá da batalha entre Ausohlung e Draco!!! O imortal campeão de Gorgomok e aquele que foi digno de morrer em suas mãos!!

Ausohlung levantou sua espada com as duas mãos sobre os ombros, pronto para descê-la e partir-me ao meio. E então, eu não sei o que houve, mas minha mão agarrou firme minha espada, minhas pernas pegarem impulso, senti meus olhos queimando em ódio, minha mente focada em vencer, meu espírito dominado por frenesi e, naquele instante, a única coisa que eu não senti, que pareceu sumir em vácuo, foi meu coração.

Um único corte. De baixo para cima, em um ângulo diagonal da esquerda para direita. Meu corpo girou, meu braço acompanhou o movimento, minha lâmina golpeou e a muralha de aço foi aberta. Estilhaços de metal voaram pela arena,o sangue pintou a mim e ao chão de rubro e o corpo de metal caiu para trás.

O público ficou atônito. Seu campeão havia sido derrotado. Um estrangeiro se mostrou superior em combate. Eu respirei fundo, senti como se o ar trouxesse de volta minha consciência e ouvi os aplausos. Alguns ainda confusos, outros eufóricos, uns gritando ofensas e ameaças. Mas o povo de Gorgomok amava a batalha acima de tudo e aquela havia sido uma grande batalha. Os aplausos dominaram a arena como uma onda que só revela seu real tamanho à beira da praia ao ponto de tornarem-se ensurdecedores.

Por um instante questionei-me se realmente havia sido eu a desferir o golpe final. Talvez fosse confortante duvidar de que havia sido por tamanha violência e tamanho ódio que houve naquele desfecho. Mas não havia como negar, fui eu. Por mais que não tivesse explicação para aquilo, havia sido eu. Naquele momento que talvez mal tenha durado um segundo, eu odiei, eu ataquei e eu venci a batalha. Nada, nem ninguém, agiu por mim. O mérito daquela vitória e de todo o sangue derramado era meu.

Por que viver pela espada? O que significa ser um guerreiro legítimo? Vencer? Proteger? Atacar? Aperfeiçoar? Honrar? Vingar? Buscar? Destruir? Onde será que encontrarei minhas respostas? Quando será que encontrarei um adversário mais forte do que eu? E quando encontrá-lo, conseguirei superá-lo? Morrerei tentando? Vivendo ou morrendo... Encontrarei minhas respostas?

Sai da arena sob os incessantes aplausos, peguei minha recompensa – talvez a maior que eu já tivesse conquistado - e me preparei para partir na manhã seguinte. Mais um reino visitado. Algumas batalhas vencidas. Mais uma grande vitória em minha carreira. Mais uma vitória em minha vida. E a certeza de que ainda havia muita estrada para percorrer. O sol se pôs em Gorgomek, o povo festejou até esgotar todo o dinheiro das apostas... E um guerreiro se preparou para próxima viagem.