terça-feira, 26 de outubro de 2010

Lua Cheia (Parte 1)

Cantarolava baixinho, caminhava pela estrada, despreocupada e elegante. Conhecia bem o caminho até a casa de minha avó. Ninguém nunca entendeu porque ela morava tão longe de tudo, mas não tinha muito o que se questionar: coisas de druida. Nem podíamos reclamar também, era um caminho completamente tranqüilo, apenas o verde da floresta, salpicado de amarelo e vermelho pelas flores e o céu escuro do começo da noite quase invisível por cima dos galhos das árvores. Às vezes, uma fada passava tímida atrás de uma margarida ou uma lebre saltitava pelos meus tornozelos. Diziam que entes viviam aos arredores, mas era quase impossível identificá-los sem que eles desejassem. O canto dos pássaros era raro, mas o som do vento levando folhas e galhos secos era bem comum.

Uma caravana havia me levado até um vilarejo próximo, me deixando apenas a um pouco mais de duas horas de caminhada. Levava apenas o fundamental: uma bolsa de viagem com um punhado de roupas e alguns doces de presente para minha avó. Muitos falaram para eu levar algo mais natural e saudável do que doces, mas ela já vive de maneira natural demais e eu não via sentido em presenteá-la com o que ela mesma já tinha todos os dias. Botei a roupa mais bonita para encontrá-la: vestido todo branco, até meus tornozelos, com um espartilho e luvas cinzentas, sandálias de couro confortáveis, e um capuz também branco. As cores favoritas de minha avó eram branco e verde, mas, como eu nunca simpatizei muito com o verde, vim só de branco mesmo. Sem maquiagens, apenas os longos cachos castanhos, sardas e orelhas pontiagudas já me deixavam elegante o suficiente para a ocasião.

Não faltando muito para a casa de minha avó, avistei um homem encostado numa árvore pelo caminho. Capa marrom fechada cobrindo todo o seu corpo, deixando apenas as pontas das mãos para fora que vestiam luvas de couro reforçado. Capuz caído nas costas, rosto sério, cabelos negros compridos. Era alto e um pouco largo, para um elfo. Pelas aparências, fez questão de ser visto, mas eu o ignorei - não me interessava o que um matuto fazia por aquelas redondezas. Passei por ele e após alguns passos:

- Esta região não é perigosa para uma dama a essa hora da noite? – ele falou sem dirigir o olhar.

Virei-me, olhei bem para ele e respondi:

- Se acha essas redondezas perigosas é porque, certamente, nunca esteve por aqui ou conhece e quer aprontar alguma trapaça.

Imóvel, ele continuou:

- Ouvi dizer que um monstro tem espreitado este caminho.

- Acredito que as pessoas sejam mais perigosas do que os monstros.

- Se a senhorita é tão confiante, eu poderia deduzir ser você o monstro.

- Insulte-me mais uma vez e eu te faço engolir esta árvore onde está encostado e não será pela boca!

Ele continuou olhando para o chão por um tempo, indecifrável.

- Perdoe-me. Você parecia estar ocupada e eu a interrompi. Ignore-me e prossiga sua caminhada.

Mantive meus olhos severos no homem. Ele desencostou da árvore, deu as costas, pôs-se a andar e depois de cinco passos sumiu de vista sem nem fazer barulho. Não sabia o que ele queria, talvez até tivesse boas intenções, mas não me importava, os desconhecidos devem ser mantidos longe.

Voltei para minha caminhada, tentando esquecer o inconveniente. Deixei minhas sobrancelhas relaxarem, respirei fundo, permiti um sorriso discreto fluir pelas bordas de meus lábios e logo, sem me dar conta, já voltava a cantarolar baixinho. Uma coruja piou, eu olhei e ela voou de seu galho, miúda, de cor marrom. Pensei o quanto era sortuda por ter visto um pássaro naquela floresta, algo tão raro.

Um passo depois do outro, sem a menor pressa, logo avistei a casa de minha avó. Toda feita de galhos e troncos quase que brutos ainda, um único cômodo largo e circular, feito entre as árvores e arbustos, seria facilmente ignorado por olhos distraídos, mas até que era bem civilizado para a casa de uma druida. Não havia porta, apenas cascas e sementes ligadas por fios formando uma cortina na entrada. Delicadamente, abri caminho com minha mão direita, fazendo um chocalhar suave e espiei por dentro da casa:

- Vó?

Entrei devagar. Por dentro, tudo muito simples: uma fogueira ritualística apagada no centro, uma cama de palha perto de uma parede, armários rústicos em todas as paredes, frascos com animais conservados dentro, outro com chás ou poções, alguns artesanatos organizados em um outro canto, tudo feito e distribuído com muito apreço. A iluminação era muito boa: a construção desordenada das paredes e do teto abria brechas gordas em todos os lados, permitindo uma boa entrada para a luz da lua cheia. Olhei tudo ao redor, procurando-a até que avistei um corpo no chão se contorcendo:

- Vó!

Larguei minha bolsa de viagem e corri até ela:

- Saia... Daqui... – Ela falou com dificuldade.

- O que houve, vó? Você está bem?

Minha avó se contraía e contorcia em convulsões terríveis. No meio dos espasmos, sua mão agarrou o chão e começou a estalar de dentro para fora. Os ossos se racharam forçando a pele ao seu limite, quase se expondo, e logo pareciam se regenerar, maiores e mais grossos, nas pontas dos dedos, eles se esticaram rasgando a pele, se tornando visíveis até que a mão já parecia triplicar de tamanho e se recobrir de pele e pelo grosso:

- Vovó... O que houve com sua mão? O que está havendo com você?

Eu estava tão assustada que já não conseguia me aproximar dela. Ao ouvir minha voz, ela me encarou: seus olhos mantinham a cor alaranjada, porém, ao invés da expressão serena e paciente, uma bestial e descontrolada havia tomado seu lugar:

- Vovó... O que houve com seus olhos?

Ela respirava fundo, com força e fúria, quase bufando – ou rosnando. Subitamente, o olhar de ira se transformou em pura dor aos sons de ossos estalando e pele rasgando que pareciam berrar de dentro de cada parte do corpo dela. Seus ouvidos élficos se cobriram de pelo, os dentes caíram enquanto ela babava sangue e novos se formaram pontiagudos e robustos enquanto o queixo se partiu ao meio, se contorceu, partiu novamente, se projetou para frente, se juntou e partiu e o nariz cedeu para um formato redondo e negro, formando um focinho lupino:

- Vóvo... O que houve com suas orelhas? O que houve com sua boca? O que é isso?!?!

Sem me dar conta, dei vários passos para trás, uma mão na boca e outra tentando achar uma parede ou uma mesa para me encostar, apavorada. Pelos longos e espessos recobriram todo o corpo de minha avó, transformando-a numa figura ambiguamente cômica e terrível. Sua roupa feita de algodão coletado na própria floresta e costurada por ela mesma mal cabia na besta, rasgando nas extremidades e sua coroa de flores permanecia encaixada acima das orelhas. Era assim que se vestia o monstro híbrido entre gente e lobo que se encontrava na casa da minha avó. Em seu último sinal de tentativa de controle – ou o primeiro de descontrole -, a besta socou uma prateleira da parede, partindo-a ao meio e espatifando os vasos que estavam apoiados nela em migalhas. Dei um grito e corri.

Enquanto disparei para fora da casa, ouvi um uivo longo e agudo vindo de trás de mim, não sabia o significado e nem queria descobrir. Corri sem pensar para onde ou para que. A sensação que tinha era que se eu parasse para pensar por um instante, a besta iria me alcançar. A floresta estava mais escura e absolutamente silenciosa, sem som de nenhum animal ou do vento, apenas meus passos e minha respiração. Logo o silêncio foi partido pelo latido gutural do monstro e os sons de seus passos em uma velocidade assustadora.

Corri entre árvores e galhos, ora tendo que me esquivar das plantas, ora acelerando meus passos ao máximo que meu corpo me permitia, torcendo para que qualquer sinal de civilização surgisse milagrosamente. Ouvi o latido mais uma vez, mais perto. Apertei a corrida, me esforcei, usei todo meu fôlego. Ouvi mais um latido, já sentindo o calor do bafo nas minhas costas. Corri ainda mais rápido e tropecei no chão.

Girei com meu pé preso em uma raiz, torcendo meu tornozelo e cai em cima de meu braço, no chão. Soltei um grito no ímpeto e arregalei os olhos, procurando a besta.

Silêncio.

Olhei para um lado. Olhei para o outro. Rosnado! Olhei na direção do som e lá estava o ser meio lobo e meio gente, vestindo as roupas de minha avó, me encarando, exibindo seus caninos atrozes e anunciando o bote. Por mais inútil que fosse, me levantei e corri.

Mancava, pois meu tornozelo doía muito, não conseguia manter a mesma velocidade de antes por falta de fôlego e pela dor, mas meu corpo já não esperava ordens da minha mente. Enquanto corria, ouvi os sons dos passos do monstro vindo pela minha esquerda. Olhei e pude vê-lo correndo a uma certa distancia, não exatamente atrás de mim, mas na diagonal. Ele queria que eu o visse. Seja lá no que minha avó havia se transformado, não era só uma besta: era um ser predador e maligno. Talvez eu não fosse só sua refeição, mas também seu esporte. Em questão de segundos, o som dos passos se deslocou e ele estava a minha direita, latindo e rosnando.

Corri, acreditando que seria morta antes mesmo de minhas pernas pararem. Seria até melhor, rápido, talvez indolor. Apenas uma mordida, uma única mordida e morte. Eu poderia perder a vida correndo, nem perceberia. Mas minhas pernas me traíram. A dor do tornozelo torcido se agravou inesperadamente, me fazendo tropeçar de novo e cair de peito no chão. Machuquei meus braços e meu rosto com a pancada, me odiando por não morrer de forma rápida e instantânea. Depois de alguns segundos de tontura, comecei a me rastejar, me puxando pela terra e pelas raízes, até ouvir o latido do monstro e sentir meu corpo paralisar. Ousei me virar, para olhar uma ultima vez para a besta. Minha respiração era rasa, meus olhos encharcados, meu corpo todo sujeira e tremedeiras. Não muito longe, o monstro: seus olhos transbordavam ira, sua boca repleta de presas e baba estava afogada em rosnados guturais, com o corpo arqueado e volumoso. Um passo lento em minha direção.

- Não... – Eu deixei escapulir baixinho, quase miando, no meio da tremedeira.

Outro passo lento com o olhar vidrado em sua janta. Um passo mais rápido, outro, outro, corrida, o rosnado se agravou, pegou impulso para o bote e uma flecha.

Um uivo longo e dolorido fez-se ouvir por toda a floresta. Uma flecha surgiu cravada nas suas costas. Ódio e dor dominaram sua face lupina. Ele olhou para o lado, tentando procurar o responsável pelo ataque e outra flecha surgiu com um zumbido curto e preciso, logo ao lado da primeira e a besta cuspiu um uivo furioso. O monstro soltou alguns latidos descontrolados e se preparou para dar o bote em outra direção, mesmo sem ter certeza de onde vinham as setas. Ele rosnou e recebeu uma terceira flecha, em uma das patas. Uivou e correu em fuga. Adentrou na floresta e sumiu nas sombras das árvores em poucos instantes. Meu corpo continuou paralisado. O mundo parecia paralisado. Depois de alguns instantes olhei para os lados, mexendo apenas os olhos, ainda apavorada. Logo, uma mão recoberta de uma luva de couro reforçado surgiu na minha frente, me oferecendo apoio para levantar:

- Eu havia dito que a região estava perigosa demais para uma dama. Vamos! O monstro logo voltará e nós precisamos nos esconder.

(continua...)