quarta-feira, 30 de junho de 2010

Não a Nós

Raspei minha espada no chão da entrada da capela formando o sinal da cruz, orando por proteção. Caminhei até o altar, me ajoelhei e rezei brevemente. Ao meu redor, meus irmãos estavam sentados em suas fileiras, de mãos dadas, olhos fechados e respiração sincronizada. Pacientemente, todos aguardavam pelas minhas palavras. Uma missão de extrema delicadeza: orar mensagens de coragem, valor, honradez, dignidade e paz. Todos fomos treinados para ter todas estas virtudes em cada gesto de nossas vidas, desde os simplórios até aos mártires. Mas aquele não era um dia simplório. Era um dia em que todos nós necessitávamos de força. Um dia em que todos nós necessitávamos estar na mais pura comunhão com nosso Deus, pois é pela vontade Dele que nos guiamos.

Fechei os olhos para acompanhar meus irmãos. Concentrei-me em equilibrar minha respiração com a deles. Apertei o cabo de minha espada em meu peito, repousando minha face na área plana de sua lâmina. Respiramos mais uma vez, como um só individuo. Então, deixei a voz de meu Senhor falar através de minha boca:

- Pensem, por um instante, em todos os ensinamentos de nossa ordem... Agora os esqueçam. Nossas almas devem seguir nossas virtudes como nossos corpos seguem nossas respirações. Enquanto pensarmos ou calcularmos, estaremos sujeitos a falhas, pois somos mortais. Nossas virtudes devem fluir de nossos inconscientes, de forma natural, espontânea, como nossas respirações.
Enquanto tivermos espíritos virtuosos e mentes equilibradas, continuaremos nossa missão de proteger, zelar e purificar este mundo. Nossos espíritos e nossas mentes são a base de nossas ações e é com nossas ações que transformamos o mundo. Sendo fiéis a este ideal, criaremos um mundo virtuoso e equilibrado.
Lutemos com armas, mas nunca nos esqueçamos do amor. Em casos de necessidade, usamos a violência, mas não é por violência que erguemos nossas armas. Erguemos nossas armas por amor. Amor ao nosso povo, amor a nossa pátria, amor as nossas famílias, amor aos nossos irmãos de ordem e amor ao nosso Deus. É graças ao amor Dele que estamos aqui hoje e através do amor Dele que baseamos cada uma de nossas ações.
Reverenciemos nosso Pai e respeitemos as crenças alheias. É o respeito por nossos diferentes que nos diferencia dos bárbaros. Mas até os bárbaros possuem suas crenças e seus panteões. Cada sociedade guarda, em sua raiz, uma centelha divina. Essa é a prova de que, querendo, todos podemos nos tornar melhores. Apenas sendo fiéis ao nosso Deus e empunhando a espada com a qual Ele nos presenteou estaremos, de verdade, na nossa jornada para um mundo melhor.
Desejemos o melhor para nossos inimigos. Que nada falte para eles e nem para seus familiares. Que se estenda uma longa mesa de banquete, farta de alimentos para que possamos resolver nossas discordâncias de forma civilizada. Que possamos, no final, brindar um cálice transbordante de paz e, se possível, aliança.
Mas que nenhuma aliança seja mais poderosa do que a aliança entre nossos irmãos. O nosso maior segredo é a nossa união. Não chamamos uns aos outros de irmãos por palavras vazias. Chamamos-nos de irmãos por sabermos que sempre que uma espada se levantar contra nós, um escudo se erguerá em nossa defesa. Chamamos-nos de irmãos por sabermos que nenhum de nós nunca estará sozinho e que por mais que estivermos distantes, ainda estaremos lutando juntos. Chamamos-nos de irmãos por nunca nos esquecermos de que a nossa arma mais importante não é a nossa espada e que nosso símbolo mais heróico não é o nosso estandarte, mas sim, que nossa maior arma e o nosso maior símbolo é o nosso escudo. Escudo que erguemos um para o outro, agora e sempre.
Fizemos nossos juramentos ajoelhados diante do santo altar e é diante dele que rezamos todos os dias, sete vezes ao dia, em homenagem ao nosso Pai. Ao longo de nossas rezas, lembramos de cada um de nossos juramentos. Lembramos a importância que é repeti-los ao longo do dia. Lembramos a importância de sermos fiéis à nossas palavras, aos nossos irmãos e ao nosso Deus. Uma palavra pode ser mais poderosa do que mil ações. Nossas armas e nossos escudos devem agir em prol de nossas promessas, nunca o contrário.
Devemos sempre nos lembrar da misericórdia e da compaixão de nosso Pai. Devemos lembrar que qualquer excesso nos levará à ruína e manchará nossa honra. E mais importante do que nos mantermos dissipados dos vícios materiais, devemos manter nossas intenções dissipadas de qualquer essência mesquinha ou vil. Nenhuma ação é em nome de nosso Deus, se ela não for pura e sincera. Nossas intenções são como sementes: elas devem ser fortes, sadias e limpas para poderem gerar bons frutos.
Mas apesar de toda a nossa bondade, todo o nosso amor e toda a nossa pureza, não podemos nos esquecer de que somos cavaleiros. Nascemos para lutar contra todo e qualquer ato que ameace nossas virtudes. Seja através da diplomacia ou da lâmina, nosso dever é defender nossas famílias e nossa pátria, em nome de nosso Deus. Não é com ódio e intolerância que conquistaremos um mundo melhor, e sim com trabalho constante e contínuo. Escolhemos viver assim. Escolhemos nos sacrificar por aqueles que precisam de nós. Pois disse o Senhor de Todos os Exércitos: “Onde dois ou mais estiverem reunidos em Meu nome, ali estarei Eu.”

Abri meus olhos para observar o altar mais uma vez. Concentrei-me em equilibrar minhas energias com a de meus irmãos. Ergui minha espada em sinal de respeito e a embainhei. Respiramos mais uma vez, como um só individuo. Ouvi, ao longe, os tambores rufando. A guerra estava para começar e era nosso dever proteger nosso povo.

- Abram seus olhos, meus irmãos... É hora de lutarmos.

Lentamente, um por um, abriram os olhos, respiraram serenamente e levantaram-se. Juntos, olhamos uma última vez para o santo altar, para o símbolo de nossa fé. Humildemente fizemos o sinal da cruz em nossas faces e pronunciamos ao mesmo tempo:

- Não a nós...

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Além do Abismo

Corri pelo corredor mais uma vez. Já tinha passado por ele antes, mas aquela mansão parecia um labirinto. Onde estava a maldita chave!? Era difícil achar um objeto tão pequeno numa casa enorme iluminada apenas pela luz da lua. Ignorei as dezenas de portas ao meu redor, fui até o fim, virei à direita e desci pela escada que levava para sala de estar. À minha esquerda a área familiar com as poltronas, uma mesa e móveis, à direita a sala de jantar. Pensei em revirar as estantes de livros e artigos de porcelana, mas bastou eu pensar por dois segundos para aquela sombra que me seguia surgir pela porta entre as estantes de louças.

Eu não precisava pensar para fugir daquilo. Fui para sala de jantar. Minha mente e minha alma se dividiam na tarefa de achar a maldita chave e de sobreviver. Passei direto por aquele cômodo, entrei em outro corredor. Este, sem portas, apenas quadros, quadros e mais quadros. Eles estavam em toda parte. Me olhavam, me julgavam, me condenavam. Minha única opção era a porta ao fim daquela passagem estreita. Eu só queria ter a sorte de atravessá-la e não me encontrar num beco sem saída. Apressei-me em alcançá-la, mas o chão estremeceu bruscamente e eu tropecei. Alguns quadros caíram pelo corredor, um atingiu meu ombro me machucando. No chão, olhei para trás e lá estava ela, serena, me seguindo sem pressa. Levantei e num impulso só arrombei a porta a minha frente.

Estava na cozinha. Olhei o ambiente por menos de alguns segundos procurando a chave, mas nada, apenas panelas, facas, garfos, garrafas, e materiais de cozinha. Fui para o outro lado do cômodo, pela minha esquerda, até outra porta. Abri e subi a escada que surgiu. Estava de volta ao andar de cima. Corri até o final do corredor tentando identificar alguma porta que ainda não tinha entrado, inutilmente. Quando fui virar para o outro corredor, lá estava ela, me esperando. Voltei por onde vim e desci a escada.

Encontrei-me no porão da casa. Havia pilhas e pilhas de caixas de madeira por todos os cantos. Derrubei uma no chão, quebrando-a e pus-me a procurar a chave no meio das roupas que se espalharam aos meus pés. Nada. Quebrei outra. Pratos de porcelana. Quebrei outra. Brinquedos de crianças. Quebrei outra. Colares, anéis, brincos, pulseiras e nada de chave. Desisti. Corri para outra porta e sai pelo jardim dos fundos da mansão.

Após alguns passos, parei para tentar achar alguma peça brilhante em meio às flores do jardim. Flores de todos os formatos e cores. Azuis, violetas, amarelas, rubras e nada dourado brilhando. Avistei um parquinho de criança mais ao fundo e corri até lá. Escorrega, balanço, gangorra e nada da chave. Olhei ao meu redor, tentando localizar algo que ainda não tivesse reparado e meu estômago embrulhou. Senti uma contração no abdômen que me forçou parar por um instante. Logo em seguida, uma segunda contração ainda mais forte me contorceu. Um engasgo. Vômito.

Vomitei compulsivamente. Minha barriga doía tanto que caí de joelhos no chão. Ao término, espremi meus olhos com força enquanto respirava fundo tentando me recuperar da dor e do enjôo. Aos poucos abri meus olhos e pulei para trás, me arrastando no chão, com a visão que tive. Meu queixo tremia, meus olhos não acreditavam. Olhei mais uma vez, incrédulo e quase vomitei novamente. Não havia muitos elementos identificáveis em meu vômito. Mas eu pude identificar um dedo. Pude identificar um olho. Pude identificar um dente. Meus braços tremiam tapando a minha boca. O desejo de não ver mais danações como aquela me deram força para não vomitar novamente. Limpei as lágrimas dos meus olhos e me levantei.

Avistei à minha frente uma casinha de madeira que deveria ser uma oficina ou um estoque. Corri antes que eu me convencesse que aquela experiência havia sido real. No interior, um balcão ao centro e entulhos de todos os tipos em prateleiras pelas laterais. Olhei uma, duas, três, quatro, cinco prateleiras e nada. A chave não devia estar ali. Sai pela mesma porta que entrei e estava de volta ao corredor dos quadros. O tempo parecia parado naquele ambiente. Quadros, muitos quadros, por todos os lados, alguns derrubados pelo chão, todos me olhando. Tentei ignorar o calafrio que me veio à espinha e fui direto para a porta do outro lado.

Estava de volta à sala de jantar. Segui direto para a sala familiar, mas algo me chamou a atenção. Parei para olhar e lá estava a pequena chave dourada, bem em cima da mesa de jantar, debaixo do meu nariz o tempo todo. Apanhei e corri para a porta principal da casa. Meu braço tremia insuportavelmente, fui obrigado a segurar a chave com as duas mãos para diminuir a tremedeira. Encaixei na fechadura, girei e abri a porta.

Corri para fora da mansão e me encontrei em uma floresta. Passei por entre as árvores usando todo o fôlego de um fugitivo em pleno motim. Por vezes me abaixei para não esbarrar em galhos, por vezes saltei para não tropeçar em raízes. As folhas secas se amassavam barulhentas aos meus pés. As corujas piavam inquietas aos meus passos. Enquanto corria, fui interrompido por uma sombra em meu caminho. Parei e observei. A figura estava parada no meio da trilha, rosnando. Deu um passo e exibiu seus enormes caninos. Era um lobo, e algo me dizia que ele não iria me atacar por fome.

Ele veio.

Pulou em cima de mim, na direção do meu pescoço, me atacando entre rosnados e latidos. Fui derrubado para trás tentando empurrá-lo para longe. Por cima, o animal parecia absurdamente pesado. Sua boca raspava nos meus braços e no meu tórax tentando abocanhar meu pescoço enquanto eu tentava me defender com empurrões e coices. Encolhi minhas pernas e com as duas juntas consegui chutá-lo de cima de mim. Ele caiu não muito longe e sem demora voltou correndo em minha direção. Rolei para direita, deixando-o pular de focinho contra as árvores. Sabendo que seria impossível me livrar daquela besta com minhas próprias mãos, dei dois passos de impulso, saltei e me pendurei com as mãos no galho de uma árvore. A bocarra do lobo agarrou minha bota no caminho, arrancando-a. Se eu tivesse demorado mais um instante, seria meu pescoço na boca dele . Pendurado, olhei para trás, encarando a figura insanamente furiosa no solo. O animal não parava nem por um instante, seus latidos e rosnados se tornavam onipresentes naquele ambiente. Respirei fundo, precisava de extremo cálculo ou minha vida acabaria no instante que eu voltasse para o chão. Ele latiu, pulou tentando me abocanhar, rosnou, deu uma volta embaixo de mim. Fechei os olhos e soltei as mãos. Meus dois pés caíram precisos no pescoço do maldito. Ouvi os ossos estalando e saltando pela carne. Mantive os olhos apertados, me forçando a não olhar para o que acabara de fazer. Respirei fundo, olhei para frente e voltei a correr.

Segui sem olhar para trás nem por um instante com meu fôlego em seu limite até chegar ao lago.

- Juan! Juan! Até que enfim! Eu achei! Trouxe o pergaminho que você precisava!

Juan parecia me esperar a beira do lago. Com um olhar sereno, ele me respondeu:

- Mas eu não posso mais receber nada. Você esta tentando entregar o pergaminho para a pessoa errada.

- Do que você esta falando Juan!? Eu quase morri pra te entregar isso! Ela deve estar me seguindo até agora! Anda! Pegue! Pegue antes que ela apareça!

- Weiss, não seja teimoso! Você sabe que eu não posso receber isso! Entregue a pessoa certa.

- Mas...

- Entregue a pessoa certa...

A imagem de meu amigo foi se desfazendo lentamente na água e eu estava sozinho mais uma vez. Respirei fundo, engoli o silêncio...

Olhei para trás.

Lá estava ela. Vindo por entre as árvores, se aproximando vagarosamente. Um longo vestido branco e rasgado nas extremidades cobria o seu corpo, mãos delicadas de pele macia e clara se estendiam em minha direção, longos cabelos prateados refletiam à luz da lua e a face oculta por uma máscara de porcelana simples, branca, com um fino sorriso vermelho esculpido nos lábios e pequenas abertura para os olhos.

Não havia mais para onde correr. Não havia mais para que correr. Ergui meu queixo tentando simular um orgulho inútil, enquanto todo o resto do meu corpo se estremecia inquieto. Meu coração disparou. Minha garganta engoliu o seco. Meus olhos se paralisaram. E ela veio.

Suas mãos estendidas alcançaram meu rosto. Senti o gelo da mácula tocando minha face de forma graciosa. Sua máscara se aproximou o suficiente para eu poder olhá-la nos olhos. Olhos azuis da cor da água. Ao redor, carne queimada e podre. Ela se aproximou quase encostando em minha face. Respirei gelado. Tremi ao ponto de mal conseguir fixar meu olhar no dela. Senti meu corpo arrepiar por completo. Senti minha vida diminuir como uma chama que se apagava dentro de mim. Senti a presença dela em cada centímetro da minha pele e percebi que, não só eu, mas cada folha seca no chão, cada galho de árvore ao redor e que o lago inteiro podia sentir o mesmo que eu – e todos se inquietavam.

Me preparei para entregar minha vida em minha última respiração.

Acordei.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Lâmina Vermelha

Pulei para minha esquerda enquanto a lâmina afundou o chão com o seu peso. Mal tive tempo de firmar os pés no solo e me agachei para desviar do novo golpe que teria me partido ao meio. Tentei uma estocada, mas o imenso corpo girou para o lado e, por puro instinto, me joguei rolando no chão, sentindo o assobio da lâmina passando pelo ar enquanto escapava de mais um golpe mortal. Eu simplesmente não podia receber nenhum golpe de uma lâmina daquele tamanho - ela facilmente partiria meus ossos e abriria meus órgãos caso me acertasse.

Difícil de acreditar que meu adversário realmente era um humano. Seu corpo de mais de dois metros de altura era coberto por uma armadura de placas completa, tornando invisível até seus olhos. Além de alto, meu inimigo era largo como uma muralha e sua arma também surpreendia. Arma a qual ele dominava de uma forma a só me dar tempo de me esquivar, sem conseguir pensar nada além de me manter vivo. Meu escudo era inútil naquele combate, pois era evidente que se eu tentasse bloquear, meu braço seria esmigalhado junto com o metal no impacto. Por poucas vezes eu consegui atingir sua armadura, e mesmo assim, sem provocar nem um arranhão. Um adversário realmente indestrutível.

Virei-me para meu oponente assim que terminei meu rolamento. Ele andava em minha direção segurando a espada com uma das mãos apoiada no ombro, desleixado. Um blefe. Sua guarda estava aberta, mas sua mente já estava com o contragolpe preparado assim que eu tentasse atacar - fingi morder a isca. Investi em sua direção, sua espada se ergueu no ar e desceu com o peso de uma avalanche, como previ. Esquivei para direita, a espada afundou pesada no chão e eu chutei seu punho com toda força. Inútil. Desarmá-lo parecia minha única chance de vitória, mas o bastardo usava uma manopla de segurança. Ele nunca soltaria a arma. Desgraçado!

Um riso abafado pelo metal saiu de seu elmo e, com uma força descomunal, ele girou a espada em minha direção. Fui obrigado a golpear a lâmina de baixo para cima com meu escudo, na tentativa de desviá-la. Mal calculado. A lâmina atingiu meu escudo e, como esperado, estraçalhou-o. Tropecei alguns passos para trás com o impacto, tentando não tombar, sentindo meu braço latejar enquanto os restos de metal despencavam pelo chão. Parecia que um mamute havia pisoteado meu punho. Já não domava minha respiração de tão ofegante. Parecia que meu fôlego não me permitiria nada além de erguer meu escudo e minha espada. Encarei os vãos negros do visor do meu adversário.

A vida nas arenas é sempre incerta. Nossa vida pode terminar a qualquer momento, basta encontrar um adversário mais forte. O público estava em êxtase. Ausohlung, meu adversário, era o campeão daquela arena hà alguns anos. Seu povo o amava e ele defendia a honra de sua pátria e da tradição guerreira local. Eu não tinha a menor chance.

Ele ergueu sua espada em posição de lança, na altura de seu peito e veio em investida. Abaixei-me, deixando a lâmina passar por cima de mim, agarrei sua cintura e com um urro de força e ímpeto, aproveitei o impulso de meu adversário, ergui seu corpo do chão e joguei-o para trás, fazendo-o dar uma cambalhota pelo ar. Sem perder tempo, ataquei com minha espada na direção de seu elmo, mas ele bloqueou com sua arma. Antes que eu pudesse pensar em outro ataque, o maldito rolou pelo chão e se levantou, voltando à posição de guarda, dessa vez nem tão desleixado. Pelo visto, além de dominar sua arma, Ausohlung também tinha total domínio de sua armadura.

- Devo agradecer-lhe Draco! Havia anos que eu não sentia tanta adrenalina em um combate! Ainda mais vindo de um forasteiro! Meu povo estava precisando de uma emoção como esta!

Eu ainda tentava recuperar o fôlego enquanto ouvia sua voz abafada.

– Você será eternamente lembrado em nossas histórias! Sinta-se honrado, pois meu povo jamais se esquecerá da batalha entre Ausohlung e Draco!!! O imortal campeão de Gorgomok e aquele que foi digno de morrer em suas mãos!!

Ausohlung levantou sua espada com as duas mãos sobre os ombros, pronto para descê-la e partir-me ao meio. E então, eu não sei o que houve, mas minha mão agarrou firme minha espada, minhas pernas pegarem impulso, senti meus olhos queimando em ódio, minha mente focada em vencer, meu espírito dominado por frenesi e, naquele instante, a única coisa que eu não senti, que pareceu sumir em vácuo, foi meu coração.

Um único corte. De baixo para cima, em um ângulo diagonal da esquerda para direita. Meu corpo girou, meu braço acompanhou o movimento, minha lâmina golpeou e a muralha de aço foi aberta. Estilhaços de metal voaram pela arena,o sangue pintou a mim e ao chão de rubro e o corpo de metal caiu para trás.

O público ficou atônito. Seu campeão havia sido derrotado. Um estrangeiro se mostrou superior em combate. Eu respirei fundo, senti como se o ar trouxesse de volta minha consciência e ouvi os aplausos. Alguns ainda confusos, outros eufóricos, uns gritando ofensas e ameaças. Mas o povo de Gorgomok amava a batalha acima de tudo e aquela havia sido uma grande batalha. Os aplausos dominaram a arena como uma onda que só revela seu real tamanho à beira da praia ao ponto de tornarem-se ensurdecedores.

Por um instante questionei-me se realmente havia sido eu a desferir o golpe final. Talvez fosse confortante duvidar de que havia sido por tamanha violência e tamanho ódio que houve naquele desfecho. Mas não havia como negar, fui eu. Por mais que não tivesse explicação para aquilo, havia sido eu. Naquele momento que talvez mal tenha durado um segundo, eu odiei, eu ataquei e eu venci a batalha. Nada, nem ninguém, agiu por mim. O mérito daquela vitória e de todo o sangue derramado era meu.

Por que viver pela espada? O que significa ser um guerreiro legítimo? Vencer? Proteger? Atacar? Aperfeiçoar? Honrar? Vingar? Buscar? Destruir? Onde será que encontrarei minhas respostas? Quando será que encontrarei um adversário mais forte do que eu? E quando encontrá-lo, conseguirei superá-lo? Morrerei tentando? Vivendo ou morrendo... Encontrarei minhas respostas?

Sai da arena sob os incessantes aplausos, peguei minha recompensa – talvez a maior que eu já tivesse conquistado - e me preparei para partir na manhã seguinte. Mais um reino visitado. Algumas batalhas vencidas. Mais uma grande vitória em minha carreira. Mais uma vitória em minha vida. E a certeza de que ainda havia muita estrada para percorrer. O sol se pôs em Gorgomek, o povo festejou até esgotar todo o dinheiro das apostas... E um guerreiro se preparou para próxima viagem.