quarta-feira, 16 de junho de 2010

Além do Abismo

Corri pelo corredor mais uma vez. Já tinha passado por ele antes, mas aquela mansão parecia um labirinto. Onde estava a maldita chave!? Era difícil achar um objeto tão pequeno numa casa enorme iluminada apenas pela luz da lua. Ignorei as dezenas de portas ao meu redor, fui até o fim, virei à direita e desci pela escada que levava para sala de estar. À minha esquerda a área familiar com as poltronas, uma mesa e móveis, à direita a sala de jantar. Pensei em revirar as estantes de livros e artigos de porcelana, mas bastou eu pensar por dois segundos para aquela sombra que me seguia surgir pela porta entre as estantes de louças.

Eu não precisava pensar para fugir daquilo. Fui para sala de jantar. Minha mente e minha alma se dividiam na tarefa de achar a maldita chave e de sobreviver. Passei direto por aquele cômodo, entrei em outro corredor. Este, sem portas, apenas quadros, quadros e mais quadros. Eles estavam em toda parte. Me olhavam, me julgavam, me condenavam. Minha única opção era a porta ao fim daquela passagem estreita. Eu só queria ter a sorte de atravessá-la e não me encontrar num beco sem saída. Apressei-me em alcançá-la, mas o chão estremeceu bruscamente e eu tropecei. Alguns quadros caíram pelo corredor, um atingiu meu ombro me machucando. No chão, olhei para trás e lá estava ela, serena, me seguindo sem pressa. Levantei e num impulso só arrombei a porta a minha frente.

Estava na cozinha. Olhei o ambiente por menos de alguns segundos procurando a chave, mas nada, apenas panelas, facas, garfos, garrafas, e materiais de cozinha. Fui para o outro lado do cômodo, pela minha esquerda, até outra porta. Abri e subi a escada que surgiu. Estava de volta ao andar de cima. Corri até o final do corredor tentando identificar alguma porta que ainda não tinha entrado, inutilmente. Quando fui virar para o outro corredor, lá estava ela, me esperando. Voltei por onde vim e desci a escada.

Encontrei-me no porão da casa. Havia pilhas e pilhas de caixas de madeira por todos os cantos. Derrubei uma no chão, quebrando-a e pus-me a procurar a chave no meio das roupas que se espalharam aos meus pés. Nada. Quebrei outra. Pratos de porcelana. Quebrei outra. Brinquedos de crianças. Quebrei outra. Colares, anéis, brincos, pulseiras e nada de chave. Desisti. Corri para outra porta e sai pelo jardim dos fundos da mansão.

Após alguns passos, parei para tentar achar alguma peça brilhante em meio às flores do jardim. Flores de todos os formatos e cores. Azuis, violetas, amarelas, rubras e nada dourado brilhando. Avistei um parquinho de criança mais ao fundo e corri até lá. Escorrega, balanço, gangorra e nada da chave. Olhei ao meu redor, tentando localizar algo que ainda não tivesse reparado e meu estômago embrulhou. Senti uma contração no abdômen que me forçou parar por um instante. Logo em seguida, uma segunda contração ainda mais forte me contorceu. Um engasgo. Vômito.

Vomitei compulsivamente. Minha barriga doía tanto que caí de joelhos no chão. Ao término, espremi meus olhos com força enquanto respirava fundo tentando me recuperar da dor e do enjôo. Aos poucos abri meus olhos e pulei para trás, me arrastando no chão, com a visão que tive. Meu queixo tremia, meus olhos não acreditavam. Olhei mais uma vez, incrédulo e quase vomitei novamente. Não havia muitos elementos identificáveis em meu vômito. Mas eu pude identificar um dedo. Pude identificar um olho. Pude identificar um dente. Meus braços tremiam tapando a minha boca. O desejo de não ver mais danações como aquela me deram força para não vomitar novamente. Limpei as lágrimas dos meus olhos e me levantei.

Avistei à minha frente uma casinha de madeira que deveria ser uma oficina ou um estoque. Corri antes que eu me convencesse que aquela experiência havia sido real. No interior, um balcão ao centro e entulhos de todos os tipos em prateleiras pelas laterais. Olhei uma, duas, três, quatro, cinco prateleiras e nada. A chave não devia estar ali. Sai pela mesma porta que entrei e estava de volta ao corredor dos quadros. O tempo parecia parado naquele ambiente. Quadros, muitos quadros, por todos os lados, alguns derrubados pelo chão, todos me olhando. Tentei ignorar o calafrio que me veio à espinha e fui direto para a porta do outro lado.

Estava de volta à sala de jantar. Segui direto para a sala familiar, mas algo me chamou a atenção. Parei para olhar e lá estava a pequena chave dourada, bem em cima da mesa de jantar, debaixo do meu nariz o tempo todo. Apanhei e corri para a porta principal da casa. Meu braço tremia insuportavelmente, fui obrigado a segurar a chave com as duas mãos para diminuir a tremedeira. Encaixei na fechadura, girei e abri a porta.

Corri para fora da mansão e me encontrei em uma floresta. Passei por entre as árvores usando todo o fôlego de um fugitivo em pleno motim. Por vezes me abaixei para não esbarrar em galhos, por vezes saltei para não tropeçar em raízes. As folhas secas se amassavam barulhentas aos meus pés. As corujas piavam inquietas aos meus passos. Enquanto corria, fui interrompido por uma sombra em meu caminho. Parei e observei. A figura estava parada no meio da trilha, rosnando. Deu um passo e exibiu seus enormes caninos. Era um lobo, e algo me dizia que ele não iria me atacar por fome.

Ele veio.

Pulou em cima de mim, na direção do meu pescoço, me atacando entre rosnados e latidos. Fui derrubado para trás tentando empurrá-lo para longe. Por cima, o animal parecia absurdamente pesado. Sua boca raspava nos meus braços e no meu tórax tentando abocanhar meu pescoço enquanto eu tentava me defender com empurrões e coices. Encolhi minhas pernas e com as duas juntas consegui chutá-lo de cima de mim. Ele caiu não muito longe e sem demora voltou correndo em minha direção. Rolei para direita, deixando-o pular de focinho contra as árvores. Sabendo que seria impossível me livrar daquela besta com minhas próprias mãos, dei dois passos de impulso, saltei e me pendurei com as mãos no galho de uma árvore. A bocarra do lobo agarrou minha bota no caminho, arrancando-a. Se eu tivesse demorado mais um instante, seria meu pescoço na boca dele . Pendurado, olhei para trás, encarando a figura insanamente furiosa no solo. O animal não parava nem por um instante, seus latidos e rosnados se tornavam onipresentes naquele ambiente. Respirei fundo, precisava de extremo cálculo ou minha vida acabaria no instante que eu voltasse para o chão. Ele latiu, pulou tentando me abocanhar, rosnou, deu uma volta embaixo de mim. Fechei os olhos e soltei as mãos. Meus dois pés caíram precisos no pescoço do maldito. Ouvi os ossos estalando e saltando pela carne. Mantive os olhos apertados, me forçando a não olhar para o que acabara de fazer. Respirei fundo, olhei para frente e voltei a correr.

Segui sem olhar para trás nem por um instante com meu fôlego em seu limite até chegar ao lago.

- Juan! Juan! Até que enfim! Eu achei! Trouxe o pergaminho que você precisava!

Juan parecia me esperar a beira do lago. Com um olhar sereno, ele me respondeu:

- Mas eu não posso mais receber nada. Você esta tentando entregar o pergaminho para a pessoa errada.

- Do que você esta falando Juan!? Eu quase morri pra te entregar isso! Ela deve estar me seguindo até agora! Anda! Pegue! Pegue antes que ela apareça!

- Weiss, não seja teimoso! Você sabe que eu não posso receber isso! Entregue a pessoa certa.

- Mas...

- Entregue a pessoa certa...

A imagem de meu amigo foi se desfazendo lentamente na água e eu estava sozinho mais uma vez. Respirei fundo, engoli o silêncio...

Olhei para trás.

Lá estava ela. Vindo por entre as árvores, se aproximando vagarosamente. Um longo vestido branco e rasgado nas extremidades cobria o seu corpo, mãos delicadas de pele macia e clara se estendiam em minha direção, longos cabelos prateados refletiam à luz da lua e a face oculta por uma máscara de porcelana simples, branca, com um fino sorriso vermelho esculpido nos lábios e pequenas abertura para os olhos.

Não havia mais para onde correr. Não havia mais para que correr. Ergui meu queixo tentando simular um orgulho inútil, enquanto todo o resto do meu corpo se estremecia inquieto. Meu coração disparou. Minha garganta engoliu o seco. Meus olhos se paralisaram. E ela veio.

Suas mãos estendidas alcançaram meu rosto. Senti o gelo da mácula tocando minha face de forma graciosa. Sua máscara se aproximou o suficiente para eu poder olhá-la nos olhos. Olhos azuis da cor da água. Ao redor, carne queimada e podre. Ela se aproximou quase encostando em minha face. Respirei gelado. Tremi ao ponto de mal conseguir fixar meu olhar no dela. Senti meu corpo arrepiar por completo. Senti minha vida diminuir como uma chama que se apagava dentro de mim. Senti a presença dela em cada centímetro da minha pele e percebi que, não só eu, mas cada folha seca no chão, cada galho de árvore ao redor e que o lago inteiro podia sentir o mesmo que eu – e todos se inquietavam.

Me preparei para entregar minha vida em minha última respiração.

Acordei.

13 comentários:

  1. Excelente rapaz... Pra voce ver que tudo pode passar apenas de um sonho ruim...

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  2. Noooooossa senhooora
    Muito bom, hein! o.O
    eu pensei em várias hipóteses e quando as coisas passagens começaram a dar em lugares que não eram os originais, eu tive quase certeza de que era um sonho! Muito bom! xD

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  3. Hehehe...
    Como havia lhe dito, vc descreve as emoções de maneira única, transmitindo para o leitor, desespero, angústia, e as sensações que o personagem passa durante todo o tempo.

    Fico muito, muito orgulhosa mesmo, de ver seus contos.
    Apesar de às vezes a gente rosnar um pouquinho graças a eles, mas isso já é tão normal xD

    Parabéns. Mesmo. Mesmo. Mesmo. rs
    E sim, é de arrepiar !

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  4. Pra variar uma excelente riqueza em detalhes ;)
    Chega ao ponto de nos induzir a estar presentes no momento, mas ainda nos dá a liberdade de "completar" a narrativa c nossa imaginação. Aposto q cada pessoa q leu esse conto imaginou algo diferente para as cenas.
    E a parada da mácula, como eu jogo seus rpgs, nossa, literamente jah me senti nesse desespero de não saber o q ou como está acontecendo !
    Trabalho excelente!
    Só o q estragou para mim foi q meus olhos escorregaram ligeiramente para a última palavra antes de começar a ler :p hehe
    Em outras circunstâncias isso teria estragado tudo, mas me aprofundei tanto na leitura q esquecí e curti mesmo assim, mais uma vez imaginando cada detalhe q vc contou ou deixou de contar.
    Jah to esperando pelo próximo ;)
    É só anunciar no seu msn q eu venho aki, hehe!
    Sucesso, irmão

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  5. Amei este conto. Principalmente, porque conforme a história decorre nós podemos nos sentir fugindo junto a ele( sensação bem proxima a que temos jogando Silent Hill com apesar um Chokito em mãos) e pelo valor especial que ele tem. Achei o final simplesmente perfeito e a personagem que o persegue também,bem diferente e criativo.

    Em resumo : Amei.Keep doing this ;D

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  6. perfeito.... me imaginei dentro do conto... agoniante ler ate o final!

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  7. Conto foda.Descrição no ponto para imergir na historia sem se tornar pedante.E fica o pedido ,algum conto dentro da Tormenta!

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  8. Li o primeiro conto e achei fantástico, mas dá pra perceber que mesmo escrevendo tão bem, você continua se aperfeiçoando. Quem disse que só se aprende errando ?

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  9. Muito bom meu velho, parabéns, continue assim que tá indo bem =)

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  10. caraca be ! muito boooom, fiquei torcendo pra encontrar a droga da chave,fiquei aflita na floresta,perfeito da pra imaginar certinho a cena ! =)
    parabéns e continue assim que vai looonge !

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  11. Há!!!! Eu sabia!!!! Já ia colocar que esse conto parecia um sonho! Já que não mostra como o personagem chegou ao lugar onde inicia a história! Adorei!

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