sexta-feira, 1 de julho de 2011

Fragrância

- Quero informações.

- E para que mais as pessoas procuram videntes?

Estávamos numa tenda feita de cortinas e tecidos que variavam entre o vermelho, vinho e púrpura. O interior tinha uma iluminação fraca de velas, apenas o suficiente para se enxergar. Na mesa, uma adaga, um baralho, pedras, conchas e uma esfera de cristal. O aroma de incensos doces dava um clima especial para adivinhações, típico de farsantes. Rosa era a vidente que haviam me recomendado - diziam que era uma excelente guia espiritual e que muitos nobres se consultavam com ela às escondidas.

- E então, o que deseja saber? – ela perguntou.

- Desejo que você se prove uma adivinha legítima, antes de mais nada.

Rosa sorriu com seus lábios estreitos e finos, quase sempre em um bico natural. Ajeitou o cabelo negro, pôs o véu roxo transparente um pouco para o lado, para não tampar a visão e esticou suas mãos magras em cima da mesa.

- Deixe-me ler suas palmas.

Sem alterar minha expressão, tirei minhas manoplas e estendi meus braços. Ela me estudou como uma acadêmica, mudando de expressão como quem via muita lógica no que fazia.

- Sente falta do seu pai, não é? – ela me encarou com seus olhos negros, certa de sua pergunta, sorrindo com um canto dos lábios.

- Eu não conheci meu pai.

- Sim, mas amou um homem como se fosse o tal e está sentindo falta dele.

Não respondi.

- De acordo com a sua mão, neste exato momento da sua vida, você está buscando aceitar algo relacionado a ele. O que é? Acha que o decepcionou? Ele te pediu algo antes de morrer? Deixou algo inacabado que você queira finalizar?

- Ele foi assassinado, quero vingá-lo.

- Ah! Faz todo sentido – ela riu, entretida. - Você sabe que o seu irmão vai acabar se envolvendo na sua jornada, mas que ela é sua, não é?

- Eu não tenho irmão.

- Mas gosta de alguém como um.

Apertei meus olhos, encarando-a.

- Você não me convenceu.

Ela se recostou em sua cadeira.

- Se eu falar apenas a verdade, você não vai acreditar ou vai acreditar demais e fará alguma besteira. Sua mão diz o seu caminho, mas ele é seu e só seu. Você vai perguntar para onde deve seguir, mas ninguém vai saber responder. Está parado num ponto, pode seguir para qualquer direção e cabe somente a você criar a trilha certa. Pelo o que eu vejo, ninguém nunca trilhou o caminho que sua mão indica.

Eu comecei a perder a paciência.

- Quero saber onde se encontra o assassino de meu mestre para matá-lo.

- Sim, ir atrás de um homem e assassiná-lo, exatamente como a sua futura vítima fez.

- Não me compare a ele! – eu quase gritei.

- Não estou comparando, estou te dizendo o que eu li.

- Você não adivinhou nada! Apenas deduziu! – berrei.

- Você está pensando que está falando com quem? Com alguma meretriz? – ela respondeu demonstrando uma autoridade digna e surpreendente.

Rangi os dentes querendo responder, mas ela tinha razão.

- Seu mestre lhe ensinou a gritar com mulheres também?

- Não. Me desculpe, não tive a intenção – falei, murchando os ombros e esfregando o rosto com as mãos, exausto.

A expressão de Rosa se desfez em preocupação, como se estivesse triste por ver um amigo em decadência.

- Você não pode ficar obcecado ou jogará fora os ensinamentos do seu pai e se tornará um assassino, como o homem que o matou – suas sobrancelhas se arquearam e o canto da sua bochecha se contraiu.

- Apenas me diga onde ele está, eu cuido do resto.

Ela deixou o ar escapar, como quem vê algo incorrigível.

- Você vai encontrar o assassino quando estiver pronto para vencê-lo. Se tentar encurtar o percurso, o pior acontecerá.

- Então, para onde devo ir?

Ela me encarou, mantendo a expressão de preocupação. Pegou um baralho, misturou as cartas e depositou o bolo em cima da mesa.

- Corta.

- O que?

- Corta.

- Como assim?

- As cartas.

- Cortá-las?

- É.

- Com a minha espada?

- Não! Divida o bolo em dois!

- Bolo?

- Você está zombando? Pega o bolo de cartas e dividi em dois, só isso.

- Ah, tá.

Fiz.

Ela tirou um punhado de cartas do topo dos dois bolos que se formaram, fez um leque e me ofereceu.

- Tire três.

Sem entender aquilo, retirei uma de cada ponta e uma do centro do leque. Em seguida, ela retirou uma carta do topo e uma do fundo de cada bolo, recolheu o baralho, depositou as quatro retiradas em cima da mesa, junto das outras três, e fez uma careta de decepção.

- O que diz? – apressei.

- Que não devo te dizer a verdade.

Nos encaramos.

- Use a sua bola de cristal.

- Essa bola de vidro não serve para nada, só uso para enganar quem pede o amor em três dias ou coisas do gênero.

Fiz um muxoxo, impaciente.

- Então, eu estou perdendo o meu tempo?

- Me desculpe, qual é o seu nome?

- Draco.

- Olha, Draco, eu quero te ajudar, de verdade, mas meus poderes são limitados, entenda isso. O que você sabe sobre o assassino?

- Ele desenhou uma estrela de sete pontas com o sangue de meu mestre na parede do templo.

- Tá, um septagrama. As cartas me deram uma pista e mandaram eu não revelar, mas eu vou desobedecer sob uma condição.

Franzi o cenho.

- Qual?

- Eu vou te dar a pista, você vai até ela e depois volta a mim.

- Por que voltar?

- Porque até lá, eu vou tentar descobrir mais sobre o assassino e poderei te ajudar de uma forma melhor – ela falou como se fosse um desabafo que não queria revelar.

- Por que se interessa tanto?

Ela piscou e contraiu o canto da boca novamente.

- Olhe essas duas cartas.

Numa, um cavaleiro de armadura branca em cima de um corcel, com uma espada e uma capa, numa planície com um sol brilhando ao fundo. Na outra, um cavaleiro de armadura negra com chifres, empunhando uma espada com um sol negro e um céu vermelho ao fundo. As duas eram até parecidas, na verdade.

- Está vendo? É o Herói e o Vilão. Draco, olhando para você e lendo a sua mão, eu vejo um herói, mas as cartas dizem que você é os dois.

- É impossível ser ambos.

- Lembra que eu falei que o seu caminho nunca foi trilhado? As cartas podem parecer confusas agora, mas algo inédito pode acontecer com você. Pode e vai, as cartas dizem isso.

Aquilo não parecia fazer sentido, mas Rosa falava com convicção.

- Essas duas são a Queda e a Ascensão. As duas podem acontecer. Meu medo é que o herói que está na minha frente caia e que outra coisa surja.

- Rosa, eu não sou um herói. Eu sou apenas um guerreiro que quer honrar o mestre.

Ela concordou com a cabeça, sem forças ou vontade de discutir mais. Talvez, não quisesse revelar mais do que já havia sido revelado.

- Promete que vai voltar?

Pensei por um instante. Pensei sobre tudo que ouvira. Sobre caminho nunca trilhado. O assassino. Meu mestre. Herói. Vilão. Queda. Ascensão. Sobre mim mesmo. Eu precisava das informações. Eu precisava honrar meu mestre. Percebi que só havia uma coisa a se fazer e, então, eu respondi:

- Não.

Seus lábios se descolaram e um pequeno risco se abriu em sua boca miúda.

- Não posso te prometer isto, Rosa.

Ela balançou a cabeça negativamente.

- O que fará, então?

- Se a resposta está em mim, irei encontrá-la. Ouvi falar de um monge que prega o autoconhecimento, verei o que ele tem para me ensinar.

- É uma boa idéia. Pena que eu não possa te ajudar mais.

- Não se preocupe com isso.

- Boa sorte.

- Não me deseje sorte, ela é escorregadia. Deseje-me força ou sucesso.

- Não sou adepta da força, mas lhe desejo sucesso.

- Obrigado.

Levantei-me e andei em direção à saída.

- Ei!

- O que foi?

- São cinqüenta peças de ouro pelo serviço – ela me lembrou, estendendo a mão.

- Desculpe, havia esquecido.

- Sei, sei. Volte sempre, Draco. E não se torne um vilão.

- Não me tornarei – eu disse.

Mas pensei “apenas se for necessário”.

12 comentários:

  1. Uau. Eu estou verdadeiramente surpresa e orgulhosa de como vc evoluiu escrevendo diálogos.

    Foi super legal ler um conto que não tem pancadaria. E ainda mais legal ser uma continuação do Draco...

    Gostei da Rosa. Sério, eu realmente simpatizei com ela, e não sei como, mas vc soube muito bem trabalhar o ar místico, e o esterótipo das cartomantes...

    E com isso, agora, tem mais um leque de mil coisas que podem acontecer e eu to curiosa!

    Nao achava mesmo que o Draco fosse acreditar na Rosa. Mas algo muito forte me diz que ele, de fato, vai voltar mais vezes.

    Adorei, adorei, adorei.
    Amo diálogos... Te levam e quando vc se dá conta, leu várias páginas... Foi muito gostoso esse conto.
    Espero que a continuação não demore =D

    Parabéns... Beijos!

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  2. Bem legal ! não gostei do nome dela... far too obvius.. mas o conto em si fico bem legal !

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  3. Parabéns Bernardo! Muito bom texto, prendeu a atenção!

    Um abraço!

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Oi Bernardo,

    brigada pelas dicas lá no meu blog, mas só queria te explicar que eu to colocando algumas partes aleatórias do meu livro, algumas seguindo sequencia, outras nao...então as vezes se você nao ler os outros nao vai entender. É eu sei...tenho que corrigir algumas coisas, mas é que nao passou por uma revisão ainda...to colocando só pra vê o que as pessoas acham, mas críticas construtivas são sempre bem vindas

    Eu gostei bastante desse seu conto e AMEI o nome dele...hahaha pegou do Harry Potter ou é só coincidência? Eu amei os diálogos da adivinha. Não sou muito fã de contos medievais, mas esse eu gostei.
    beijos

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  6. Adorei! Gosto da sua construção de diálogos e da maneira como você nos insere na narrativa. É impossível não ler até o fim.

    Meus sinceros parabéns! Sempre que atualizar o blog, me comunique.

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  7. Olá Bernardo! Adorei o conto, realmente não acreditei quando acabou - gostinho de quero mais na boca.

    Uma obs A Rosa - gostei mto dela, vc trabalhou até bem o personagem em tão pouco espaço - perguntou o nome do Draco... Ela não é vidente?!

    Parabéns e obrg pelo follow. Abraços!

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  8. Gostei muito da dinâmica do conto, mais um que levo como inspiração pra meus RPGs.

    Parabéns!

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  9. Olá Bernardo, acabei de te conhecer pelo twitter de um amigo meu.

    Realmente adorei a Rosa, e espero vê-la novamente.

    Sucesso e abraços.

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  10. Você leva muito jeito com as narrativas, hein. Adorei o blog e as narrativas. Parabéns.

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  11. Adorei!! Assim como a Selene, eu gosto mto de dialogos!!Faça mais contos seguindo esse modelo ;)
    Parabéns...

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  12. Gostei,mas acho que deves evitar palavras modernas como acadêmico num conto medieval.

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