terça-feira, 7 de junho de 2011

Branco Maculado

Odeio bruxas! Odeio! Se eu pudesse, caçaria todas, uma por uma! Fazem chover até inundar, trazem pestes, deixam os animais enlouquecidos, animam os mortos! Sabem fazer tudo de ruim!

Girei meu machado e abri o estômago do lobo que pulou em minha direção, fazendo-o rolar no solo com o seu ultimo uivo. Estávamos cercados, obrigados a dar as costas um para o outro e enfrentar, cada um, pelo menos três lobos. Mais um veio para cima de mim e eu afundei o seu focinho contra o chão, dividindo-o em dois pedaços. Não demoraria até que eles começassem a avançar em duplas.

- Doutor, o senhor está bem!?

Por que um médico estava caçando a bruxa? O que diabos um médico pode fazer numa caça, além de dar mais trabalho? Um lobo foi rasteiro, em direção ao tornozelo do doutor, rosnando e salivando. Por um instante, pensei que ele ficaria aleijado, mas o susto e o reflexo foram mais rápidos e ele enfiou a espada curta que mal sabia empunhar olho adentro do animal e tirou, tremendo os braços, mas com o olhar firme, sem hesitar.

- Acho que estou indo bem. Sou um intelectual, mas meu avô foi lenhador e me ensinou como lutar quando criança.

- Que bom p’ra você. Agora, fale menos e mate mais!

Outro lobo começou a preparar um bote. Ergui meu machado, ele rosnou, me preparei para o golpe e fogo! Uma pequena explosão surgiu em cima do bicho. Logo, suas costas estavam incendiando e ele correu, em chamas.

- Mago maldito! Não está ocupado o suficiente com os seus, não!?

Olhei com o canto dos olhos e vi todos os lobos que ameaçavam Victor, o mago, dormindo, mansos, enfeitiçados.

- Não precisa agradecer – ele retrucou, cheio de si.

- Eu tenho um machado! O doutor tem uma espada curta! Adivinha quem precisa de mais ajuda no momento!

Sem responder, ele se virou para o lado do médico e lançou mais alguns feitiços. Na minha direção, mais três avançavam. Dois pularam na altura do meu rosto e foram recebidos por um só giro da minha arma. O terceiro foi mais esperto e abocanhou minha bota, rasgando o couro e encravando os dentes na carne e no osso. Gritei um xingamento de dor e finalizei o maldito com uma machadada no meio das costas. Chutei a boca dele, me livrando das presas e ainda tive tempo de ver o doutor enfiando sua lâmina pela garganta de outro, enquanto Victor enfeitiçava mais um, fazendo-o emagrecer e definhar em um instante, ganhando uma aparência doente e decadente. Caminhei em direção ao animal enfraquecido, mas o mago segurou o meu ombro.

- Ele é inofensivo, deixe-o em paz.

Quis matar aquele lobo, confesso, mas Victor tinha razão. Os lobos atacaram por feitiço da bruxa e nós nos defendemos por necessidade. Não havia por que matar um animal já derrotado. Caminhei para a trilha, indo em direção à nossa rota original.

- Você está mancando – alarmou o doutor.

- Foi só uma mordiscada. Falta pouco para o covil da bruxa, não vamos perder tempo.

- Sente-se, vou fazer um curativo.

- Isso é bobeira, doutor.

- Você mancando vai andar mais devagar, não vai ter tanto equilíbrio, vai sangrar sem parar, podendo perder a concentração no meio de uma luta, além de pegar alguma infecção, ter de amputar a perna e encerrar a sua carreira de mercenário precocemente.

- Pelos deuses, você fala demais! Vamos combinar o seguinte: eu deixo você fazer o curativo desde que cale a boca! Temos um acordo?

- Você não é um homem burro, Erick, apenas teimoso. Que bom que me deu razão.

- Eu não te dei razão!

- Sim, todos sabemos disso. Tire o coturno.

Sentei na estrada de terra batida, tirei a porcaria da bota e estiquei a perna. Tinha vontade de esmurrar o doutor. Ele abriu a mochila, revirou alguns frascos, escolheu um, destampou e derramou um liquido incolor sobre a ferida. Cerrei os dentes com força para não demonstrar a dor que aquilo provocou. Depois, ele pegou um pequeno pote de barro, abriu, pegou uma folha seca, passou uma pasta cremosa e amarelada e apertou contra um dos buracos de canino. Repetiu o processo até tampar toda a ferida e, por fim, cobriu todo o meu calcanhar e o meu tornozelo com uma atadura.

- Está coçando!

- Vai coçar por pouco tempo, depois, você vai esquecer que foi mordido.

Levantei-me e dei alguns passos. Preferia sentir dor do que a coceira que dominava meu tornozelo.

- Essa coceira vai me desconcentrar mais do que a dor!

- Logo passará – respondeu, irredutível.

- Que seja.

Seguimos a trilha sem trocar mais palavras. Já era noite, estávamos cansados, mas não podíamos perder tempo. A filha de um barão havia sido raptada por uma bruxa e fomos contratados para resgatá-la antes que algo de ruim fosse feito com a menina. Bem, eu e Victor fomos contratados, o doutor veio por vontade própria. A trilha era precária, quase toda tomada pelas árvores magras e pelas folhas secas que se alastravam pelo chão. A lua brilhava prateada no céu sem estrelas nem nuvens. Escolhemos não acender tochas, para não anunciar nossa chegada. Dentro de mais uma hora de caminhada, chegamos ao casarão abandonado, feito de covil pela bruxa.

Por fora, o lugar parecia desabitado há séculos. Três andares, tijolos que um dia foram brancos, teto completamente desgastado, algumas janelas quebradas, outras penduradas e um grande portão de entrada, quase da altura do primeiro andar, metade resistente ao tempo e metade cedido aos cupins e a chuva. Raízes e folhas dividiam espaço com vigas de madeira podre.

- Falta pouco, agora – afirmou o doutor, aparentemente aliviado.

- Ainda é cedo para ter certeza. Não sabemos o que terá lá dentro. O covil pode ser a parte mais demorada – corrigiu Victor.

- Não se preocupe, doutor, eu salvo a sua pele quando você gritar como uma mulher – zombei.

- Lucas. Meu nome é Lucas. Já estamos juntos há um dia, pode parar de me chamar pela minha profissão.

Resmunguei qualquer coisa e me dirigi à porta. Pensei em derrubá-la para entrar, mas a parte destruída era tão grande que não foi necessário. Entrei primeiro. Lucas em seguida e Victor por ultimo. Por dentro, um imenso salão de entrada em ruínas. Restos de mesas, cadeiras e armários se amontoavam em todas as partes. Nas laterais, quadros empoeirados e pequenas mesas de enfeite aos pedaços, além de portas e buracos. Aos fundos, uma grande escada dava para os andares de cima. No centro, a bruxa. Esperávamos que estivesse escondida em algum canto, preparando armadilhas, mas ela estava logo na nossa frente. Ainda pior, estava derrubada no chão, parecendo já derrotada.

Entreolhamo-nos, desconfiados. Dei um passo e ela reagiu.

- Tarde demais... – ela murmurou, estendendo uma das mãos enrugadas. – Vocês não podem me salvar...

- Salvar você?

Victor arqueou uma das sobrancelhas. Lucas não disfarçava sua confusão.

- Do que você está faland... – fui interrompido por um relâmpago vindo da escada que me derrubou no chão. Gritei de dor e abri os olhos, procurando o responsável pelo golpe covarde.

Do alto da escada, lá estava ela, a filha do barão. Cabelos loiros, levemente ondulados, até o meio das costas, um vestido longo, branco, de seda. Pele pálida, boca chamativa, carnuda, olhos azuis e maliciosos. A pessoa que deveríamos resgatar me atacou.

Levantei-me, ainda com dor e ergui meu machado. Victor preparou energia arcana em seus punhos, atento para o momento certo de usá-la. Lucas não conseguia reagir.

- Irmã? – balbuciou.

- Você é irmão dela!? – interroguei.

Uma esfera flamejante do tamanho de um tórax surgiu e foi em direção ao Victor, que respondeu com um gesto, fazendo a magia explodir na sua frente, sem acertá-lo. Corri em investida contra a megera, mas, no meio do caminho, ela conjurou um feitiço que tornou o chão sob meus pés escorregadios como gelo, me fazendo tropeçar de boca na madeira. Lucas se manteve incrédulo e imóvel. Victor cantou algo incompreensível, gesticulou e setas pingando verde surgiram no ar, indo de encontro à jovem baronesa. Ela desviou algumas com sua magia, mas foi atingida por outras, corroendo uma manga e um pedaço da saia do seu vestido. A megera encarou Victor, cantou um feitiço e ele, que estava preparando outro, simplesmente parou de se mexer. Sua expressão era de susto, parecia tentar se mover, mas não podia. Levantei-me, subi a escada correndo, ergui meu machado...

- Por que está atacando uma menina tão frágil? Por que não ataca o seu amigo mago?

E ela tinha razão. Por que eu não atacava Victor? Dei meia volta e me direcionei contra meu aliado. Seus olhos se agitaram, ele procurou alguma solução, mas não deu tempo. Meu machado foi de encontro à sua costela. Victor berrou, caiu no chão, segurando a ferida aberta, olhos apertados de dor. Voltei à sanidade e percebi o quão tolo fui por cair no encanto da bruxa. Agora, eu estava decido a matá-la mais do que nunca.

Ela já havia descido a escada, sem nenhuma pressa, enquanto conjurava outra magia. Duas cadeiras e uma mesa levitaram e vieram em minha direção. Parti as cadeiras ao meio com meu machado, mas não tive tempo para a mesa, que me atingiu e me derrubou. Chutei com tanta força que parti o móvel com minha bota. Enquanto levantava, pude ver a megera com um sorriso confiante em seus lábios vermelhos, mas, também vi Lucas por trás dela, encravando sua lâmina nas costas da irmã. O sorriso se desfez em grito. Pelo visto, as aulas de anatomia serviram para algo no combate, pois aquilo pareceu doer muito.

- Como pôde? Como pôde se tornar uma bruxa? – o doutor atacou a irmã, mas ainda hesitava.

De dor, para raiva, a megera ergueu uma mão e a espada curta saiu de suas costas, ganhou vontade própria e começou a atacar Lucas. Ele tentou dominar a arma, brigou sozinho, como se um inimigo imaginário disputasse o cabo da espada, mas falhou. A espada entrou no seu ombro, girou no ar, fez cortes nos dois braços do doutor, entrou na sua barriga e caiu no chão, imóvel, junto ao médico.

Corri em direção à bruxa, balancei meu machado, mas ela foi mais rápida, me fez levitar, como havia feito com os móveis, e arremessou meu corpo para cima, me fazendo atingir o teto e depois cair livre em direção ao chão.

Victor se pôs de joelhos, usando todas as suas forças para um ultimo feitiço. Ergueu uma mão, desenhou no ar e foi interrompido pela bruxa, que segurou seu punho e falou docemente como uma mãe:

- Por que luta tanto? Por que se esforça tanto para sofrer? Você se acha tão inteligente, não é? Se acha tão sábio e poderoso... Venha. Venha comigo e todo o seu sofrimento irá acabar.

Os dois se encararam por alguns instantes. Ele com olhar de idiota, inexpressivo e ela com um sorriso suave e um ar de protetora. Victor se levantou, a bruxa caminhou lentamente em direção à porta e ele a seguiu.

Não pude acreditar nos meus olhos. Victor não era um dos magos mais poderosos do mundo, mas nunca se deixaria enfeitiçar assim. Dane-se se a megera era poderosa, eu ia por um fim naquilo.

Levantei. Ela me olhou, sem alterar sua expressão e meu corpo se contraiu, como se tentasse evitar uma contração involuntária. Peguei meu machado, mas senti meus dedos atrofiarem. Olhei e vi minha mão se desfazendo e meu corpo encolhendo. Quis xingar a bruxa.

- Có có!

Ela foi embora, seguida por Victor. Eu estava explodindo de raiva.

- Có có!!!

Aff, era só o que me faltava. Ela me transformara numa galinha.

6 comentários:

  1. Eu fiquei muito feliz de ver esse conto aqui.

    Primeiro pq ele mostra ação como sempre..
    Mas além disso ele tem uma reviravolta muito bacana nas revelações..

    E sério, eu lembro como se fosse hoje da gargalhada sincera e de como eu achei ( e mais do que continuo achando ) GENIAL o final.

    Sério. Agora vou passar a noite rindo sozinha de novo, graças a sua sacada com esse desfecho.

    (Que eu sei muito bem como ele se sentiu. No WoW vc pode ser transformado em animais tb durante a luta =x )

    Parabéns, gostei MUITO!

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  2. Mairon :

    bom muito bom ! o_o nao sei se foi consciente mais esse conto é praticamente uma satira da sua vida... de um ponto de vista filosofico

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  3. Oi Bernardo,

    Olha apesar dos seus tipos de conto não serem nem um pouco o tipo de história que eu leio, nem muito meu gênero, resolvi dar uma lidinha pra prestigiar um amigo. Olha o final foi bem surpreendente e cômico, e você descreve bem as cenas. Mas eu não entendi bem o título. Bom, mas apesar de não ser o costume...eu tava torcendo pra bruxa, eu gosto de bruxas hahahaha
    ps: quem é a velha??...essa parte ficou sem explicação
    outra se ele nao gosta de bruxas...o vitor é o que?
    ps2: eu tbm tenho um blog...se quiser da uma passada e fala o que achou hahaha
    beijos

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  4. Koeh be! Bruxas são iradas!
    Esse seu perfil delas ja ta old =p

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  5. Gostei do seu conto cara, ri muito com o final inseperado, fugiu daqueles velhos clichês de aventuras fantásticas. E seus personagens tbm estavam bons. Me lembrei de quando jogava RPG!

    Abraços!

    Se poder faça uma visitinha no meu blog.
    www.gavetadasimaginacoes.blogspot.com

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  6. Então, como a Gabi e a Carolina já comentaram já eu tava torcendo mesmo pelas bruxas, seja lá quem elas eram, esse personagem principal era um porre. Logo, bem feito pra ele.

    Eu acho que as partes de luta ficaram meio confusas, não entendi muito bem quem matou o quê e o que aconteceu com o Doutor no final das contas. (aliás, achei que ele era legal, mas ele é mau! Como ele tem coragem de matar a irmã dele a sangue frio assim?)

    Os pontos altos pra mim são as descrições de ações aleatórias (sem batalhas) como a parte em que o médico coloca o remédio no chato. O final também é engraçado.

    Beijinho.

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